Opinião

Que “novo normal”?

13 ago 2020 10:41

C. Handy já referia que “muitos de nós, creio eu, estão confusos com o mundo que criámos para nós próprios no Ocidente”

Meu Caro Zé,

Como deves saber, a vida continua a ser determinada pela Covid-19, dando origem a uma daquelas frases ambíguas que todos papagueiam sem pensar no seu verdadeiro significado: “O novo normal”.

Talvez que o único ponto comum na interpretação da frase seja que ela significa que há e continuará a haver, pelo menos durante algum tempo (será?), restrições ao que era a vida antes da Covid-19. E lá vem a outra frase: “Nada será como dantes”, que se presta a todas as interpretações.

Durante a primeira fase da pandemia, emergiu, no meio das enormes dificuldades e receios, um grande sentido de solidariedade que abria perspetivas de que isto serviria para corrigir os terríveis erros de desenvolvimento que se estavam a cometer em todo o mundo, onde a solidariedade não era, por certo, a primeira preocupação.

Contudo, a esses sinais de esperança que, vamos ser otimistas, não desapareceram e, de algum modo, até parece terem-se fortalecido, vêm, sucessivamente, a impor-se os do “business as usual” que parecem fazer contravapor às necessárias alterações do modelo de desenvolvimento, reconhecidamente errado e para o qual não faltavam alertas.

Deixa-me citar Charles Handy em The Hungry Spirit – Beyond Capitalism – A Quest for Purpose in the Modern World (1997), (a tradução é minha): “Não conheço melhor sistema económico. Todavia, a nova moda de tornar tudo um negócio, mesmo as nossas vidas, não me parece ser a resposta. Um hospital, e a minha vida, é mais do que um mero negócio.”

Acrescenta ainda “muito do mundo em que vivemos só fala a linguagem do dinheiro”, ilustrando esta realidade com uma citaç ão de um personagem de uma obra de George Orwell que, parafraseando uma parte de uma Epístola de S. Paulo aos Coríntios, substitui “caridade” por “dinheiro”, concluindo “agora permanecem a fé, a esperança e o dinheiro, mas, das três, a maior é o dinheiro”.

E como a certa altura refere que “Aristóteles tem o irritante hábito de apontar para o óbvio”, não resisto, pela atualidade da reflexão que proporciona, citar Aristóteles na sua Ética a Nicómaco, que ele considera ser uma “disciplina política”: “Denominamos virtude humana não a do corpo, mas a da alma e afirmamos que a felicidade é uma atividade da alma. O político há de conhecer, pelo menos em parte, os atributos da alma, como o oftalmologista não deve ignorar o resto do corpo. E com mais razão ainda o primeiro, porque a política é mais digna de estima do que a medicina”.

Será isto que sentimos? C. Handy já referia que “muitos de nós, creio eu, estão confusos com o mundo que criámos para nós próprios no Ocidente” acrescentando que a culpa é nossa e, portanto, também minha.

Por isso, não desisto de “cantar até que a voz me doa”.

Até sempre,

Texto escrito se gundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990