Opinião

Realidade contagiada

18 mar 2021 15:44

O que estamos a viver é uma anormalidade, consubstanciada numa crise de características singulares, potencialmente devastadoras, que não deve tornar-se no nosso novo normal, sob pena de colocarmos em causa a nossa identidade societária.

Numa altura de novo desconfinamento, nada mais é novidade. A pobreza, a solidão, a precariedade, a miséria social continuam a fazer parte da sociedade portuguesa, agora de forma agudizada pelo SARS-CoV-2, um vírus que é pouco democrático e que contribui, indelevelmente, para a (re)produção das desigualdades.

Num momento histórico de particular incerteza, esta situação pandémica demonstrou-nos que a nossa grande prioridade continua a ser a vida, ressaltando a imensa fragilidade humana e a importância do coletivo na esfera individual.

Mas, se por um lado, no início, o povo português se congregou em torno da ideia romantizada do "vai ficar tudo bem", encetando esforços individuais e conjuntos, em prol de um bem maior, nesta altura, vive momentos de desgaste pandémico e, até, de habituação "normalizada", que tendem para a fragmentação.

Afigura-se-nos importante refletir sobre esta tendência, de possível normalização, uma vez que o conjunto de hábitos diários, que nos foi sendo inculcado, decorrente da situação pandémica e da própria forma de a mesma nos ser, diariamente, comunicada fez com que o medo exacerbado, que "alimentou" o primeiro confinamento, tendesse para uma situação de adaptação, da qual depende a nossa sobrevivência.

Teria sido importante o Governo, ab initio, ter-se rodeado de especialistas vários, para além dos virologistas, epidemiologistas e especialistas em saúde pública, tais como psicólogos, sociólogos, antropólogos, e afins, que em muito contribuem para a contextualização e posterior interpretação da conduta humana. ´

Só assim pode estar devidamente munido de informações que permitam antever diversos cenários, para que as estratégias de ação possam demonstrar-se adequadas em função das expetativas traçadas, contrariando o estado de anomia social e combatendo, eficazmente, as desigualdades.

Sendo o Homem um ser social, por excelência, a sua abordagem, pela complexidade que encerra em si próprio, deverá comportar um caráter multidimensional, de cariz multidisciplinar. Uma melhor interpretação da vertente social do vírus permitirá uma melhor explicação da forma de atuação do mesmo, no que diz respeito ao contágio e à sua repercussão no tecido social.

Para além disso, mais do que nunca, urge comunicar bem, de forma clara e adequada ao universo do povo português, para que sejam compreendidas as regras e a necessidade de agir de acordo com elas, porque só um estado de consenso concertado, assente numa consciência coletiva, gera cooperação e corresponsabilização e, naturalmente, coesão.

Chegar a todos e a cada um, numa lógica de proximidade efetiva, na linha da premissa aristotélica de que "o Homem é um animal político", enquanto animal comunitário, gregário e solidário, deve ser a meta de qualquer atividade política.

O que estamos a viver é uma anormalidade, consubstanciada numa crise de características singulares, potencialmente devastadoras, que não deve tornar-se no nosso novo normal, sob pena de colocarmos em causa a nossa identidade societária.

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990