Opinião

Os Justos

27 fev 2020 10:44

E assim, em frente da bancada de mármore branco onde amassava os croissants, perguntou-me se eu tinha palavra e que só precisava da minha resposta afirmativa para me alugar o apartamento.

(…) O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.
(excerto do poema Os Justos de Jorge Luis Borges)

Sempre gostei de ouvir rádio. O pequeno transístor foi desde muito cedo uma espécie de anúncio do que seria o dia.

Hoje, há duas ou três estações que me acompanham diariamente e duas ou três vozes que, sem me conhecerem, me pressentem os temores e me resolvem os dias tortos.

A Inês Maria Meneses, que oiço há muitos anos na Radar e na Antena 1, é uma dessas vozes.

Ora, a Inês publicou recentemente um livrinho chamado O Caderno de Encargos Sentimentais que reúne algumas das suas reflexões e pensamentos quotidianos.

Da leitura do livro retive um dos pensamentos - Há uma diferença enorme entre não ter ressentimentos e não esquecer: a memória é um lugar precioso na arrumação da espécie.

Se manter a memória viva nos permite acautelar a repetição dos erros ou das opções que nos marcaram exageradamente a pele e o órgão que bombeia o sangue, reter nela os sinais de quem nos mantém a esperança, ajuda-nos a continuar a ver o lado menos turvo dos dias futuros.

Conheci o Sr. Josué em 1998. Procurava desesperadamente um apartamento para viver em Lisboa e os processos de arrendamento já na altura começavam a complexificar-se.

Depois de uma visita ao pequeno apartamento que viria a alugar, o porteiro informou-me que o senhorio fazia questão de conhecer todos os inquilinos pessoalmente e que devia por isso ir ter com ele à pastelaria de que era dono. Lá fui. Munida de fiadores, garantias bancárias e meses de caução.

O Sr. Josué, um homem dos seus 60 anos, estatura baixa, muito magro e muito bonito, não era só o dono da pastelaria mas o seu principal empregado que, com o filho, trabalhava diariamente na pastelaria, com fabrico próprio, das 7h às 23h.

Recebeu-me na cave imaculada onde garantia o fabrico da pastelaria e não me recordo, até hoje, de ter estado num sítio tão claro e limpo. E foi ali que tivemos um dos diálogos que espero não vir a esquecer e que me norteia muito frequentemente em momentos de maior descrença.O Sr. Josué fez poucas perguntas nesse diálogo.

Quis saber de onde vinha, se tinha família, se trabalhava e se gostava do que fazia.

Respondi-lhe a tudo e informei-o, por fim, que trazia comigo um dossier com todas as garantias de futuro cumprimento do pagamento das rendas.O Sr. Josué, que não era de muitas palavras, dirigiu-me demoradamente o olhar e disse-me que queria apenas fazer-me uma última pergunta.

E assim, em frente da bancada de mármore branco onde amassava os croissants, perguntou-me se eu tinha palavra e que só precisava da minha resposta afirmativa para me alugar o apartamento.

Pediu-me para guardar o dossier das garantias e assinámos o contrato. Vivi naquele apartamento até ao ano em que a minha filha nasceu e tenho muitas saudades.

O Sr. Josué, soube há dias, já morreu, e os filhos trespassaram a pastelaria.

Soube também que quando me alugou aquela casa vivia sozinho porque a mulher estava há muitos anos doente e ele, já então, vivia apenas para a pastelaria e para a ir visitar nas horas livres.

A memória é um lugar precioso.