Opinião

"Never let me go"

6 nov 2025 08:00

Nunca me Deixes é tanto uma metáfora sobre o prejuízo que o uso descontrolado da ciência pode causar-nos, como também sobre a condição humana

São cada vez mais elaboradas as estratégias que os editores desenham para manter procurados e lidos os livros que publicam.

A quantidade e o ritmo frenético com que as novidades editoriais são lançadas afastam precocemente do radar dos leitores obras cuja qualidade pede para permanecerem acessíveis e prontas para serem descobertas.

As livrarias não abarcam tantas edições, os investimentos de marketing retiram visibilidade a livros de venda lenta, os leitores têm orçamentos e tempo limitados, e a crítica literária, que até há uns anos guiava opções de compra, tem cada vez menos expressão nos media, também eles em profunda crise perante a revolução digital que está a transformar o mundo que até aqui conhecíamos.

O espaço desta crónica é manifestamente limitado para a reflexão demorada que o tema exige.

O que lhe dá o mote é uma dessas estratégias, a publicação da edição que marca o 20.º aniversário de um dos mais extraordinários romances do escritor britânico Kazuo Ishiguro (Prémio Nobel de Literatura 2017).

Para assinalar esta data simbólica, a editora inglesa desafiou o autor a escrever uma nova introdução para o romance, que relançou este ano numa edição premium em capa cartonada.

Superando em vendas o romance que o consagrou – Os Despojos do Dia –, Nunca me Deixes transformou-se num clássico moderno amplamente estudado em universidades e traduzido em mais de cinquenta línguas.

Foi adaptado ao cinema (num filme protagonizado por Carey Mulligan, Keira Knightley e Andrew Garfield); inspirou peças de teatro e até uma série televisiva japonesa.

No texto inicial que dedicou a esta nova edição, também já disponível em português (ed. Gradiva), Ishiguro procura identificar as razões pelas quais Nunca Me Deixes continua a conquistar leitores, e quais as principais interrogações que suscita a cada leitura.

O romance, que apelida de uma história de estudantes, gira em torno das relações de um grupo de jovens aparentemente educado num contexto privilegiado ao qual está afinal reservado um futuro obscuro e limitado no tempo…

Ora é precisamente essa a primeira das questões que parece ser comum aos leitores intergeracionais do romance – podendo fugir ao terrível destino que paira sobre as personagens porque não mostram elas sinais de rebelião?

Já a segunda prende-se com a natureza do próprio romance – trata-se de um livro sombrio ou de um romance edificante sobre o amor e a memória?

Ishiguro encontra na tensão metafórica do livro o fundamento para estas duas interrogações. Nunca me Deixes é tanto uma metáfora sobre o prejuízo que o uso descontrolado da ciência pode causar-nos, como também sobre a condição humana – os limites da vida; a inevitabilidade do envelhecimento e da morte; as estratégias que adoptamos para dar sentido aos dias no tempo finito que nos foi atribuído.

E é precisamente no cruzamento de todas estas dimensões que mais uma vez reside o brilhantismo e a uni-versalidade da voz literária de Kazuo Ishiguro.

Na descrição final que faz da razão pela qual decidiu dar o título «Never Let Me Go» ao romance (uma canção popularizada por Nat King Cole nos anos 50), Ishiguro identifica afinal aquilo torna os seus leitores tão fiéis à sua obra - «Há alturas em que nós, seres humanos, desejamos, do fundo das nossas almas, algo que sabemos estar para além do alcance de qualquer pessoa. Ao longo dos anos, apercebi-me de que é neste território — esta terra de ninguém entre o que desejamos desesperadamente e o que sabemos serem os limites do possível — que mais gosto de trabalhar como escritor.»