Opinião

O auto-cuidado de quem cuida

13 ago 2020 11:30

Saber reconhecer os meus limites. Deixar-me ir. Respirar fundo. Existir. Habitar o meu silêncio que faz de mim um ser único. Dar importância à minha vida interior e exterior.

Pausa de Verão. Meditar. Ao ouvido o áudio que me diz: “cuida de ti da forma que estás habituada a cuidar dos outros”.

À minha consciência surge a minha filha, a minha família, todas as pessoas com quem trabalho diariamente, os meus amigos. Mas também a importância do meu auto-cuidado.

Aprender a respeitar os sinais que vêm do meu corpo mas que também brotam espontaneamente da minha alma e indicam caminhos.

Saber reconhecer os meus limites. Deixar-me ir. Respirar fundo. Existir. Habitar o meu silêncio que faz de mim um ser único. Dar importância à minha vida interior e exterior.

John Norcross (2009), psicólogo americano dedicado à investigação na área do auto-cuidado dos psicoterapeutas, defende o nosso auto-cuidado enquanto um imperativo ético e moral e não apenas uma necessidade pessoal.

Num artigo bem humorado publicado no The Clinical Psychologist, fala-nos da grande dificuldade que temos, nós psicoterapeutas, em aplicar os mesmos princípios que usamos para compreender e ajudar as pessoas que nos procuram e aponta direcções, ao mesmo tempo que fornece uma lista de estratégias práticas de auto-cuidado enquanto exercício preventivo e ilustrativo de como determinados défices nos cuidados ao nosso Self podem ter implicações problemáticas no nosso trabalho.

Na sociedade actual que exige, em particular também nesta agora onde todos estamos no confronto directo com a experiência pandémica, é como se nós psicoterapeutas estivéssemos a correr contra a maré das mesmas vulnerabilidades: a maré do excesso das horas de trabalho, da pressão emocional, do medo, da ansiedade, das angústias de morte e de separação e do risco da retraumatização emocional que daí advém.

Vem-me à memória Actores de Marco Martins, um elogio franco à profissão de actor, onde conseguimos assistir em palco ao que efectivamente pode representar este risco do trabalho emocional.

Na peça, determinada emoção (e.g. zanga, tristeza, raiva) é pedida ao actor para a convocar naquele preciso momento, sem qualquer contextualização e independentemente da sua disposição, sob a voz de comando do encenador que exige a sua repetição com mais e mais intensidade.

Nas consultas, esta intensidade surge primeiro na pessoa que entra e nos confia o seu estado emocional e nos toca no íntimo.

Depois, no que em nós ressoa, na nossa capacidade empática e emocional em conseguir traduzir à pessoa diante de nós esse impacto nas formas de cuidado, interesse genuíno e esperança.

E, no final de um dia de trabalho, também nós, tal como um actor, somos veículos de emoções, verdadeiros “atletas emocionais” e isso conta. Conta muito.

E é aqui que o exercício do auto-cuidado se torna um imperativo ético e moral, porque é este que nos permite estarmos “frescos e arejados”, livres, disponíveis e respeitados, em cada momento, com cada pessoa, em cada dia.

O que somos, como somos e como nos sentimos interfere no trabalho clínico, ao mesmo tempo que saber refrear as nossas tendências mais masoquistas é fundamental para evitar o perigo de nos tornarmos “não pessoas”.