Opinião

Emoção Artificial 

19 out 2023 16:31

As circunstâncias definem não raras vezes os leitores nos quais nos tornamos

Em Janeiro de 2023 chegava-me à caixa de correio electrónico a notícia feliz de um novo livro do poeta Jorge Gomes Miranda para poder publicar. Um autor que sigo há muito, pela qualidade intrínseca da sua poesia, pela consistência da sua voz poética, pelo rigor lúcido com que observa o mundo e se relaciona com os textos.

Emoção Artificial cativou pelo título e pelo espanto decorrente da leitura dos poemas que nele encerra. Textos absolutamente singulares que questionam uma realidade que já nos atravessa os dias – a do lugar do humano num contexto em que a digitalização e o algoritmo nos circunscrevem, esvaziam ou empurram para becos sem saída ou pontos de fuga.

As circunstâncias definem não raras vezes os leitores nos quais nos tornamos. Nos anos 70, num contexto familiar ditado pela oposição ao regime, o meu primeiro acesso à poesia fez-se através de textos de intervenção que li por mão familiar numa cidade onde ainda eram poucas as casas com livros. A sorte fez com que a poesia fosse um género com um lugar privilegiado nas estantes da casa onde habitei. Uma herança «genética» que dura até hoje, menos marcada por razões políticas, porém com mais assíduas leituras de mais amplificadas latitudes.

O acaso, esse misterioso caminho, levou-me em 1994 a iniciar a minha carreira profissional numa editora independente - a Editorial Presença -, cujo catálogo reservava um lugar especial à edição de poesia através dos livros publicados na Colecção Forma e do trabalho de reunião da obra poética de autores como Ruy Belo, João Miguel Fernandes Jorge, Joaquim Manuel Magalhães, David Mourão Ferreira e Ruy Cinatti.

O ADN mítico da Forma manifestou-se, a certa altura, na revelação de novas vozes poéticas que, na década de 90, começavam a distinguir-se. Entre alguns dos nomes revelados como o de Rui Pires Cabral, o de Jorge Gomes Miranda, coincidiu no tempo, com a minha paixão antiga pelo género e com a abertura de uma imensidão literária ainda por descobrir.

O contacto com a sua voz poética foi, com todo o fervor de leitura que se tem aos 20 anos, um ponto de viragem no meu encontro com o lugar que a poesia ocupa na minha relação com a literatura. Desde então leio assiduamente toda a sua obra já vasta e publicada noutros idiomas e países.

2023 reservar-me-ia o privilégio de me poder dedicar à edição deste seu singular Emoção Artificial que marca também a minha primeira incursão nessa actividade tão fascinante quanto arriscada que é a de editar, sobretudo poesia.

Um poema não chegará para conhecer profundamente o trabalho poético de um autor ou a leitura que dedica ao mundo, mas será seguramente essa primeira porta de entrada para o até aí sem nome ou sentido. E desse modo será sempre, quer do lado do leitor quer do lado do editor, o renovado deslumbramento com a descoberta de um livro e de uma voz únicas. 

O robot e o humano 

Como é ser um humano perguntou o robot? 
Viver com medo de que aconteça um acidente a quem amámos; 
sentir alegria depois da incerteza de um exame médico; 
trabalhar com perícia os materiais da sombra: a tristeza e a mágoa; 
repartir a luz que acumulámos desde a infância com velhos e crianças; 
cinzelar sulcos: rios diante da discórdia e lavrar sílabas de harmonia; 
conversar com os outros sentado numa cadeira e não numa trípode; 
ser cativo de um rosto, um corpo, um sorriso até depois da morte.