Opinião

Tendas de campismo e cornettos de chocolate

10 ago 2023 16:27

Visitar Ayamonte era o pináculo de umas férias repetidamente inesquecíveis marcadas por uma visita anual ao «estrangeiro»

O Verão chegava depois de um ano de espera. Agosto anunciava a recompensa imaginada durante meses a fio. O Algarve consubstanciava o sonho prometido. Para uma rapariga de província nascida nos anos 70 oriunda de uma família de classe média, três semanas de férias num parque de campismo algures entre a Quarteira e Monte Gordo, constituía um luxo ainda partilhado por poucos.

A viagem era longa e preparada com antecedência. A verificação dos fatos de banho, que transitavam de ano para ano (não se conhecia ainda a lycra, mas o nylon e os elásticos deviam ser fortes para aguentar a vicissitudes dos verões); a arrumação do material de campismo; a compra de pilhas e botijas de gás para as lanternas e os fogareiros, e de paralelepípedos de gelo para a geleira que levaria a comida para a viagem.

Partia-se muito cedo. Chegar ao Algarve demorava e os enjoos infantis obrigavam a mais paragens. A demora arrastava-se pelo Alentejo adentro ao som das cigarras e das cantigas revolucionárias que compunham o cancioneiro familiar. Entre o sobreaquecimento do motor do carro, o furo de um pneu e a bicicleta infantil que ameaçava cair do tejadilho, acontecia a paragem mais longa para o almoço guardado na geleira - carnes frias, pão, salada russa e fatias de melancia, o sabor luxuriante das frutas raras do Verão.

Sem ar condicionado, o carro transportava três gerações de veraneantes, a mais antiga das quais poucas vezes vira o mar. A sede saciava-se com a água dos termos que vedavam mal, e não existiam estações de serviço onde parar para recuperar ânimo e frescura.

O Algarve anunciava-se através do odor das alfarrobeiras e pelas vendas de cestos, figos e amêndoas, que ladeavam a estrada nacional, uma região rural a circunscrever a oportunidade do turismo emergente.

O parque de campismo vislumbrava-se na estrada já ao entardecer. Montar a casa de pano ocupava a família pela noite dentro – estacas, martelos, toldos, ferros e lonas. O sonho prometido tinha um preço e chegava depois de muito trabalho.

Mas a primeira noite de férias, ao som da brisa quente e do remoto rebentar das ondas, era já um auspício mágico.

Nas três semanas seguintes o tempo regia-se pelo nascer do sol que ditava a hora de saída para a praia e o último estertor do pôr do sol que marcava o momento de voltar para a tenda. Os serões viviam-se sem televisão e em raides de bicicleta entre o parque infantil e o bar do parque onde se construíam amizades sazonais. Escreviam-se postais e a pele, incautamente avermelhada, cheirava a Coppertone.

Visitar Ayamonte era o pináculo de umas férias repetidamente inesquecíveis marcadas por uma visita anual ao «estrangeiro» e pela confirmação de que o domínio da língua castelhana ia melhorando de ano para ano.

Numa rotina estival que pouco variava, regida por uma economia que não permitia grandes excessos, o último dia de férias, depois da desmontagem da tenda, chegava sob a forma de cornetto de chocolate, o único gelado do ano. Aquele que, no longo caminho de regresso a casa, deixava na lembrança a experiência de um Verão possível e irresistivelmente memorável. Boas férias.