Opinião

Antes pelo contrário

28 fev 2020 10:41

Desta vez, o que esteve em cima mesa foi a disposição sobre a própria vida do titular do direito.

Ao contrário do que aconteceu, recentemente, com o caso Marega e com os cães do João Moura, a comunicação social fez uma cobertura adequada e serena à complexa e muito sensível questão da eutanásia.

Os deputados, também eles, deram um enormíssimo contributo à democracia ao terem-se pronunciado com a decência que colocaram nas suas intervenções. Apesar de ser essa a sua obrigação, ainda assim, estão todos de parabéns, em especial, pelo respeito manifestado pelas opiniões contrárias às suas.

O debate, inevitavelmente acalorado, foi respeitador e comedido.

Na discussão pública, muito participada, foram usados argumentos éticos, jurídicos e filosóficos, como era suposto serem, e também aqueles que não deveriam ser chamados a debate como é o caso dos argumentos emocionais, morais e religiosos.

Tal discussão acalorada, em torno da vida e da liberdade de decisão, já acontecera no debate sobre a interrupção voluntária da gravidez, permitindo que alguém pudesse pôr fim a uma vida que, na circunstância, nem era a própria.

Desta vez, o que esteve em cima mesa foi a disposição sobre a própria vida do titular do direito.

Os defensores da eutanásia poderão questionar como é que, sendo a vida um direito fundamental, poderá o exercício desse direito ser usado contra a vontade do seu titular, ao passo que os que pensam em sentido contrário podem argumentar, como de resto o fizeram abundantemente, com a inviolabilidade da vida humana.

A grande questão, com a qual nos deparamos, é a de saber se a sociedade tem o direito de obrigar o indivíduo a viver e a suportar a dor insuportável precisamente em nome da dignidade da pessoa humana ou se, por esse mesmo motivo, o titular do direito à vida pode, pelo contrário, decidir pôr fim à mesma.

Todos compreendemos o quanto esta questão é difícil e pouco consensual, o que não se percebe é a incoerência, quer dos defensores do «sim», quer dos defensores do «não», no que diz respeito ao referendo.

Os que são a favor do «sim» à eutanásia são contra a realização da consulta popular, por acharem que o processo legislativo resolve e consolida a questão, enquanto aqueles que dizem «não» à eutanásia defendem o referendo, apenas, com o propósito de a impedir.

Nada mais errado para ambos os quadrantes.

Os defensores do «sim» só conseguirão que a lei perdure no tempo se houver referendo que a reforce, evitando que a curto prazo a lei seja revogada, sem mais, por uma outra maioria parlamentar com sentido de voto a favor do «não».

Se a lei fosse referendada agora, tudo indica que o «sim» ganharia, garantindo que uma outra maioria futura jamais pudesse revogar a lei sem submeter a questão, de novo, a referendo.

Nessa altura, a eutanásia, questão indiscutivelmente fraturante (tal como foi o divórcio e a interrupção voluntária da gravidez), já estaria em vigor, há vários anos, e a opinião pública já teria outra aceitação sobre ela, pelo que, muito provavelmente, votaria a favor da sua manutenção, impedindo que uma outra maioria conjuntural matasse o direito a morrer.

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990