Opinião

A um gato

8 jan 2021 10:18

A minha filha, que me desafia diariamente e cuja personalidade me corrige há quinze anos os excessos maternais, não costuma pedir prendas de Natal.

Os espelhos não são mais silenciosos
Nem mais furtiva a alba aventureira;
Tu és, sob o luar, essa pantera
Que só vemos de longe, receosos.
Por obra indecifrável de um decreto
De Deus, te procuramos futilmente;
Mais remoto que o Ganges e o poente,
É teu o isolamento mais secreto.
O teu dorso condescende com a morosa Carícia desta mão.
Admitiste,
Desde essa eternidade que é o triste Esquecimento, o amor da mão medrosa.
Existes noutro tempo.
E és o dono
De um domínio fechado como um sono.
Jorge Luís Borges in O Ouro dos Tigres (1972)

2020 fica sem grandes memórias e termina muito torto. Por tudo e por mais alguma coisa.

A pandemia roubou-nos uma «normalidade» que tinha ainda alguns traços de liberdade e a profilaxia viral, tal como se previa, reduziu-nos as festas a um mínimo para alguns cruel.

Para mim, que já perdi a minha mãe e tenho uma família pequena, foi o primeiro Natal sem a presença física do meu pai que, por razões médicas, teve de manter-se num isolamento que a tecnologia disfarça, mas não resolve.

A minha filha, que me desafia diariamente e cuja personalidade me corrige há quinze anos os excessos maternais, não costuma pedir prendas de Natal.

Este ano, inesperadamente e com uma irredutibilidade inusitada, pediu um único presente.

Um gato. Adoptado.

A decisão foi demorada mais por precaução adulta do que por espontaneidade e determinação adolescentes.

Mas de algum modo, num momento como o que atravessamos, o resgate de um animal abandonado e o desenvolvimento de uma relação amistosa extra mundo digital pareceram-me não um excesso afectivo maternal, mas uma opção avisada e até uma profunda demonstração de amor (sobretudo para uma mãe que tem um secreto medo de gatos…).

E assim, a um dia antes de terminar, ao meu 2020 veio juntar-se um novo ser vivo que habita desde então a casa.

Veio dos Açores para o abrigo onde, depois de ter observado a minha filha, resolveu escolhê-la.

Desde então passa os dias a pedir festas e mais parece um cão do que um gato e mia sempre que se vê sozinho pela casa, mas mais quando perde de vista quem escolheu para coabitar.

Guarda-lhe desde então as noites e acompanha-a no sono.

Sem que nada tivessem planeado, uma foi a escolhida e outra respondeu ao que lhe foi pedido, o lugar das duas parece estar desde o primeiro dia claramente encontrado.

É a primeira vez que tenho um gato em casa.

Não sei como tudo vai prosseguir, mas alguma coisa na certeza deste desenho espontâneo entre o que é pedido e o que é dado me traz algo de espanto, surpresa e até de reflexão.

E à sua dimensão pode ser uma espécie de luz guia para o meu ano que entra e para os outros todos a seguir.

Veio com o nome em sânscrito, Paz, e apesar de termos outro nome escolhido não nos atrevemos a mudar.

Bom Ano para todos.