Opinião

A Estrada

21 ago 2020 10:34

Regressei à sala escura por causa do ciclo comemorativo do centenário do nascimento de Federico Fellini para ver A Estrada (1954), um dos filmes que marcaram o seu início de carreira como realizador e talvez um dos mais poéticos da sua filmografia.

“Eu sou um ignorante mas li alguns livros. Tudo neste mundo tem um propósito. Até esta pedra. Quando nasces. Quando morres. Quem sabe? Não, eu não sei qual é o propósito desta pedra, mas ela deve ter um, porque se esta pedra não tem propósito, então tudo é inútil. Até as estrelas! Pelo menos, acho que sim. E tu também. Tu também tens um propósito.”
- O Louco, interpretado por Richard Basehart, no filme A Estrada, de Federico Fellini

Depois de seis meses de restrições e confinamento voltei à sala de cinema.

A escolha dos bilhetes reflectiu as restrições sanitárias e a proximidade das cabeças na fila da frente deixou de ser uma ameaça ao bom visionamento do ecrã.

Mesmo com os que me são próximos a distância obrigatória implica agora uma cadeira de intervalo e a plateia cheira, por estes dias, a álcool desinfectante.

Regressei à sala escura por causa do ciclo comemorativo do centenário do nascimento de Federico Fellini para ver A Estrada (1954), um dos filmes que marcaram o seu início de carreira como realizador e talvez um dos mais poéticos da sua filmografia.

Numa homenagem às artes circenses, que Fellini sempre admirou, a história desenrola-se em torno de três personagens – Gelsomina, interpretada por uma ímpar Giuletta Masina, a actriz e mulher que marcaria para sempre a vida e a obra do realizador, - Zampanò (Anthony Quinn) - um saltimbanco forte e bruto que a leva para trabalhar com ele na sua vida de estrada - e o Louco, pelo rosto de Richard Basehart, um equilibrista fatalista e folgazão determinante para o destino das outras duas personagens.

Gelsomina, uma espécie de bobo da família por causa das suas feições e comportamento bizarro e cuja ingenuidade e desejo de amar e ser amada atravessa todo o filme, é vendida pela mãe a Zampanò.

Crédula e inocente, Gelsomina entende o caminho que inicia com Zampanò como a possibilidade de sentir um amor que nunca experimentou e que acabará por nunca se manifestar.

Zampanò, para quem apenas a sobrevivência é lei, transforma Gelsomina num mero instrumento para os seus propósitos.

Usa-a no seu número de circo, onde impressiona ao rebentar correntes de ferro com a força de uns pulmões de aço; usa-a para recolher o dinheiro de quem os vê e que os permite continuar a viver uma vida de indigentes numa miserável Itália do pós-guerra; usa-a para prosseguir na sua estrada para nenhures acompanhado de um ser estritamente utilitário a cujas interrogações se limita a responder com grunhidos silenciadores.

A chegada de uma terceira personagem à história, Richard Basehart, no papel do equilibrista Louco, devolve a Gelsomina, sob a forma de uma belíssima canção de Nino Rota (o compositor predilecto de Fellini), a crença de que o afecto é possível.

E anuncia a tragédia que se sucederá, o «cordeiro sacrificial» de toda a trama que será afinal Gelsomina.

Num filme que nada tem de linear, A Estrada é um tratado sobre a alma humana e sobre a nossa necessidade de salvação mesmo quando sabemos que isso jamais poderá acontecer.

Zampanò não é a salvação de Gelsomina, Gelsomina já não serve para expiar a culpa de Zampanò, nem a sabedoria trocista do Louco o salva da morte que para ele esteve sempre iminente.

No final do filme, numa cena arrebatadora em que o gigante Zampanò maltratado pela vida chora abandonado numa praia deserta, Fellini filma de forma tocante a brecha que Gelsomina abre nos pulmões de aço do homem terreno que finalmente se interroga sob a forma de pranto.

Ou nos interroga a nós que mesmo de máscara e óculos embaciados projectamos no seu abandono os nossos mais íntimos temores sem que no lugar ao lado possamos agora encontrar consolo na mão que nos acompanha.