Opinião

Literatura | Amadeo

30 mai 2020 20:00

Tanto se tem comparado esta vaga do coronavírus com a Pneumónica que assolou o mundo em finais da Grande Guerra (1918) que me deu para ler o livro Amadeo, biografia romanceada por Mário Cláudio em 1984, do pintor modernista Amadeo de Souza-Cardoso, que aos 30 anos, morreu vítima dessa gripe

Sabe quem já o fez que não é fácil ler Mário Cláudio dado o intrincado da intriga e da arquitetura dos seus romances, para além da sua rebuscada sintaxe latinizante e do vocabulário a roçar o gongórico. O próprio assume-se como barroco – um barroco moderno. Não o é também Agustina? E Aquilino?

O leitor entra, de chofre, na Casa. A Casa de Manhufe na qual Amadeo passa a sua despreocupada infância de menino abastado. (Sabemos como é determinante na literatura portuguesa a instituição Casa – centro irradiante e monopolizador dos enredos, das personagens, do tempo. Lembremos Eça, Carlos de Oliveira, José Régio, Cardoso-Pires, Agustina e outros). Em Amadeo regista-se a mesma marca. É na Casa que o pintor absorve tudo o que vai definir a sua arte; é à Casa que ele regressa ciclicamente para as festividades do ano; é à Casa que ele retorna, com a sua companheira Lucie, a fugir da Guerra.

O romance é apresentado em forma de diário entre 1980 e 81 de alguém, o narrador – que só muito mais além na narrativa ficamos a saber chamar-se Frederico que vai referindo um amigo Álvaro, o qual só bem no fim da história ficamos a saber quem é. O tio do narrador, Papi, esforça-se por escrever sobre a vida do pintor amarantino, embora lhe esteja a ser bastante custoso. Papi tenta “farejar” a vida e o íntimo de Amadeo deslocando-se a Manhufe, a Paris-Montparnasse – onde aquele viveu a sua séria juventude, pintou, amou e se deu com toda a elite cultural europeia que se estava formando na Cidade-Luz, no início do século XX. Mas está tudo tão mudado… e, dificilmente, Papi consegue dar uma linha de harmonia ao seu escrito.

Ficamos a saber, pelas entradas diarísticas de Frederico o que vai ouvindo ao tio: que Amadeo não gostou de Coimbra, nem de Lisboa e, ao Porto, só ia para se munir de materiais de pintura. Vamos descobrindo que era bom observador da natureza, das cores, dos cheiros, organizadíssimo, voluntarioso e atlético, algo snob, algo boémio, visionário, diligente trabalhador. Mas toda esta informação apenas é passada ao leitor a partir das sensitivas descrições e das reflexões do narrador – seja ele quem for. Dizia Verlaine, «o entrecruzamento de vozes narrantes tudo configura especulação, logo, literatura.» E é o que se pode dizer deste livro de leitura nada fácil: é um bom pedaço de literatura.

Depois foi o inferno da pneumónica atacando a partir de Gaia. O desnorte! A família refugia-se em Espinho acreditando nos benfazejos ares do mar. O brutal pânico de Amadeo que vê morrer os outros e sabe que também vai morrer. «A morte leva-o em três dias. (…) Entra o padre, como se impõe, (…) intimará Amadeo, articulando a custo a frase, «Faça depressa ao que vem!» A garganta é um nó de cortiça, por onde se desce a um inferno temporário… e até se esvair, vai golfando, golfando…».