Opinião
Dicionário improvisado XL
O tempo passa por nós, está sempre a passar; e deixa-nos coisas, que vamos guardando. Somos depósitos, guardadores de coisas.
Ablepsia Apenas quando nos vemos a partir do olhar do outro podemos realmente conhecer-nos. Porque o auto-olhar é cego: não vê, limita-se a imaginar.
Amaurose
As certezas são como uma cortina; ou uns óculos sujos; perturbam a visão. São as incer-tezas que focam olhar. Estar incerto é como limpar os olhos; ou afastar a cortina.
Bússola
Gosta do vento. Gosta de o ouvir chegar. Gosta de o ouvir passar. Gosta de imaginar até onde poderia ir, se seguisse o seu som.
Caminho
Como sabe a flor que a sua forma de caminhar pelo mundo é crescer, erguendo-se no céu? Se tivesse pernas, daria passos? Sonhará ter asas? Ou limita-se a crescer, porque é essa a sua forma de caminhar?
Catexia
A sombra e a luz tocam-se; influenciam-se; movem- -se em sintonia; são inseparáveis. Mas, na verdade, não se amam.
Clarividência
A árvore nunca vira o mar. A árvore não sabia que existia mar. Mas, por vezes, a árvore sonhava com o mar.
Coerência
O movimento é difuso; apenas o pensamento confere coerência à existência.
Condensação
Olhamos o céu com a esperança de que as tristezas que vivem em nós se dissipem atra-vés do olhar. Talvez as nuvens que vemos sejam a condensação dessas tristezas, e por isso nos tranquilize tanto vê-las passar; vê-las afastarem-se.
Depósito
Somos depósitos. O tempo passa por nós, está sempre a passar; e deixa-nos coisas, que vamos guardando. Somos depósitos, guardadores de coisas.
Dessintonia
É triste quando dois destinos se cruzam e nem sequer se olham.
Evangelho
A dor é um erro de Deus.
Insignificância
Para Deus, cada pessoa é um museu.
Intimidade
Duas pessoas encontram-se para um passeio. Caminham juntas, sem nunca se tocarem. Não sabem para que serve aquele passeio, mas apreciam-no.
Introspecção
Conhecerá a árvore os pensamentos de cada um dos seus ramos? Ou apenas de alguns? De nenhum? Que sabe a árvore de si própria, afinal?
Multiverso
Certo dia, as nuvens desceram até à terra e acomodaram-se na relva; as árvores subiram ao céu e enraizaram-se entre o vento. E fez-se uma festa.
(Textos incluídos no livro AEQUILIBRIA, com a fotógrafa Elsa Arrais)