Opinião

Contra a barbárie

23 dez 2021 15:45

“A pura anarquia anda à solta pelo mundo”

"Acredito que a ordem é melhor que o caos, a criação melhor que a destruição. Prefiro a delicadeza à violência e o perdão à vingança. De modo geral penso que o conhecimento é melhor do que a ignorância, e tenho a certeza de que a empatia humana é melhor do que a ideologia. Acredito que, apesar dos triunfos recentes da ciência, os homens não mudaram assim tanto nos últimos dois mil anos; e, por conseguinte, devemos tentar continuar a aprender com a História. (…) Acima de tudo, acredito que certos indivíduos receberam de Deus o dom do génio, e valorizo uma sociedade que torna isso possível."

O excerto com que abro este texto pertence às páginas finais da obra Civilização – O Contributo da Europa para a Civilização Universal (Gradiva, 2021) do historiador inglês Kenneth Clark.

Um livro singular que sai agora em edição portuguesa escrito a partir dos guiões originais da célebre série de televisão homónima encomendada por David Attenborough e emitida pela BBC, em 1969.

Kenneth Clark (1903-1983), o mais jovem director a ocupar o cargo na National Gallery em Londres (tinha apenas 30 anos) e que chegou a ser conselheiro de Calouste Gulbenkian, percorre no livro a história da arte, da arquitectura, da ciência, da poesia e da filosofia ocidentais, desde a Idade das Trevas até ao final do século XX, ocupando-se do contributo dos grandes artistas europeus no desenvolvimento do espírito humano - de Dante a Einstein, de Bernini a Bach, de Descartes a Rembrandt, de Van Gogh a Tolstoi, entre muitos outros óbvios e menos óbvios.

Em cerca de 400 páginas acompanhadas de imagens das obras que menciona, Clark guia o leitor no espaço e no tempo, contextualiza, ousa novas interpretações e aproxima-nos de uma longa linhagem de homens e mulheres cujas realizações transformaram a civilização europeia alargando a nossa compreensão do mundo e de nós próprios.

Consciente das omissões e das generalizações a que uma proposta desta magnitude o conduziria, Clark optou no livro por manter a fluidez e o ritmo que marcaram os guiões dos episódios de televisão, em detrimento de uma versão mais exaustiva como poderia sugerir a passagem à escrita.

Como ele próprio afirma no prólogo, “é assim que conversamos à mesa depois do jantar, com os ritmos do discurso comum e até alguma linguagem improvisada que impede a conversação de se tornar pomposa”.

Sem o som e as imagens em movimento que singularizaram os episódios de Civilização, a versão em livro continua a oferecer, a par da erudição do autor, a emoção genuína e o entusiasmo de um pedagogo que transmite numa linguagem cristalina 13 lições magistrais sobre arte e não só.

No capítulo final do livro, Kenneth Clark, que atravessou duas guerras mundiais e assistiu à descoberta da bomba atómica, mantém algumas reservas quanto ao futuro.

Seguro de que todas as manifestações artísticas da civilização ocidental e de que os seus sucessivos de renascimentos devem dar-nos confiança em nós próprios, considera, por outro lado, que a falta dela pode estar na origem do seu fim e que “o cinismo e a desilusão podem ser tão eficientes a destruir-nos como as bombas”.

E termina citando uma estrofe de um poema profético de W. B. Yeats:


“Tudo se desmorona, o centro já não aguenta;
A pura anarquia anda à solta pelo mundo,
A maré tingida de sangue foi libertada, e por toda a parte
A cerimónia da inocência submersa.
Aos melhores falta-lhes convicção, enquanto os piores
Ardem de paixão intensa”


Talvez o reencontro com o que de melhor gerámos enquanto civilização através das palavras de Kenneth Clark possa ser um caminho para um novo renascimento.

Feliz Natal.