Opinião

Cinema | "Esquece tudo o que te disse". O abismo entre marido e esposa

28 fev 2020 20:00

Numa sala, um casal dança sem cumplicidade e com movimentos frouxos ao som de uma música de carácter elegíaco, pois fala de um amor que morreu e pelo qual já não vale a pena lutar, apenas dizer adeus.

Ainda assim, o casal tenta mais um passo... Esquece tudo o que te disse (2002) é o primeiro verso da canção original que dá nome ao filme de António Ferreira, que foi exibido no início de Fevereiro, na RTP2.

A sensação de infelicidade que paira na cena rapidamente se transforma num ataque de fúria próximo de um acto cómico. 
De um lado, ciúmes, desespero e tristeza são sentimentos que invadem Felizbela (Custódia Gallego).

Do outro lado, Messias (António Capelo) está farto das investidas incontroláveis de raiva da mulher. Nesta primeira cena, António Ferreira apresenta-nos logo as derrotas de um casal que nunca soube pôr término a uma relação sem futuro; que se deixou prolongar no tempo, na esperança de que, algum dia, as coisas se resolveriam e voltariam a ter a magia de como era no princípio. 
Magia é uma arte que diz respeito a Messias, que além de dentista é mágico amador nos tempos livres. 

Se ele consegue transformar uma flor de papel numa rosa, o mesmo não se poderá dizer da sua relação, pela qual não tem qualquer interesse em tirar um coelho da cartola para a reavivar.

E tudo decorre como sempre até ao momento quando aquela família decide hospedar a sobrinha Bárbara (Amélia Corôa), uma parente distante.

A chegada de um estranho a casa de uma família, que muda para sempre as relações dentro desse seio, lembra o filme Teorema (1968), de P. P. Pasolini.

Porém, em vez da presença do mistério e do divino do novo inquilino como acontece em Teorema, Bárbara traz consigo um passado marcado pela violência na infância e pelo complexo edipiano por resolver, pois cresceu sem a presença masculina do pai.

No entanto, Ferreira responde com uma boa dose de humor à gravidade que é ter de lidar com a crise de meia-idade de um casal.

Como fontes centrífugas do casal que arrasta tudo consigo, existe uma filha de 16 anos que namora com Pankas (Alexandre Pinto), um rapaz aspirante a cineasta com quem tem uma banda de punk juntamente com outros colegas de liceu, e Tobias (Fernando Taborda), pai de Messias, que se atira à empregada e se sente enclausurado depois de o filho o ter trazido para a cidade para que não vivesse sozinho.

Ferreira consegue um equilíbrio surpreendente entre os momentos mais sentimentais e os cómicos. Nunca os dois parecem exagerados ou desproporcionais roçando o ridículo.

O filme é um exemplo daquilo que deve ser um melodrama cómico e Custódia Galego tem uma performance esplêndida, transformada numa verdadeira Cruella de Vil, que vê a sua obsessão pelo marido transformar-se em pesadelo.