Opinião

Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos: a procura de uma identidade

8 dez 2019 13:00

Os tempos actuais favorecem a massificação do sistema crítico que simplifica a relação do espectador com o filme, devido ao ritmo vertiginoso do quotidiano.

Os críticos de cinema dão estrelas aos filmes que viram e deste modo poupam tempo ao leitor, pois este já sabe se o filme é bom ou não antes mesmo de ler a crítica. Muitas vezes, basta reter o número de estrelas para se ter uma ideia da qualidade do filme. Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, cuja realização é divida entre João Salaviza e Ranée Nader Messora, apela a um outro tipo de relação que vai além do bom ou mau.

É um filme que convida à reflexão permanente e, como tal, qualquer resposta a que se chegue nunca é final. O conflito com o eu interior é uma constante no protagonista, Ihjâc, que não se sente capaz de aceitar o papel de pajé (uma espécie de feiticeiro) que a tradição lhe impõe.

Na tentativa de resolver esta dissidência, o protagonista decide fugir para a cidade, na esperança de se “curar”.

Na sequência inicial filmada no estilo de noite americana, vemos projectar-se nas costas de Ihjâc, que prossegue pelo meio da floresta, as sombras dos ramos e das folhagens das árvores, como se de uma tatuagem em movimento se tratasse.

Ihjâc e o meio ambiente são um só. O jogo de sombras na pele do rapaz funciona como uma espécie de manifesto imagístico da simbiose dos krahô com a natureza.

Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos
Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos

 

A ideia do convívio íntimo entre um povo indígena e o meio que o envolve é algo que está no imaginário de qualquer espectador. Mas a dupla de realizadores desmistifica o exotismo e isolamento do indígena quando o põe a relacionar-se com o mundo ocidental. Depois de ter fugido para a cidade, não vemos uma inaptidão que facilmente seria expectável.

Antes pelo contrário, assistimos ao rapaz a falar Português do Brasil, a cantar uma música que toca na rádio e a jogar flippers. No entanto, os dois diferentes mundos apenas se tocam superficialmente e nunca intimamente.

O diálogo entre o indígena e uma funcionária do centro de apoio aos povos nativos é um sintoma disso mesmo: “você não percebe nada da vida dos índios”, “E tu não percebes nada da vida dos brancos.”

Todavia, tudo isto não é mostrado através de um olhar que se lamenta, mas sim de um olhar capaz de uma fina ironia. O filme é também a procura de uma resposta para um problema interior que ninguém parece compreender, desde a funcionária que desvaloriza a “doença” como a companheira de Ihjâc, que pede para que ele deixe de ter pensamentos maus.

A câmara é o testemunho da viagem que é preciso fazer solitariamente. Ela tem ainda a preocupação de não apressar nada, de deixar os acontecimentos levarem o seu tempo.

O plano fixo que recusa o olhar precipitado torna-se assim o dispositivo primordial.