Opinião

Agora

18 jun 2020 15:46

E depois, o que fazer com o corpo que não entende a distância, e insiste em esticar os braços, arquear os dedos, e tocar?

Depois do susto maior na pressa da fuga para dentro, depois do medo de não se ter ainda aprendido o suficiente para poder sair de casa a saber lutar contra o invisível, depois da angústia de a todo o momento se poder ser receptor e portador do que, para nós e para o outro, será uma iminência de perigo, depois do pavor de se poder ser veículo para a morte de quem amamos, depois da perplexidade de nos vermos actores de um filme que já tínhamos visto comendo pipocas, depois de em cada outro vermos apenas uma razão para o distanciamento, depois de tudo isso, um pouco mais sabedores e mais calmos, eis-nos chegados ao agora.

Agora, estamos menos assustados, e dividimos a vida entre o que é normal e o que deixou de o ser, numa existência em mundos paralelos difíceis de misturar.

Agora, os filhos adultos precisam de máscara para poder abraçar os pais.

Agora, à entrada do supermercado a máscara, à entrada da missa o gel, a amiga que se encontra connosco porque nos quer oferecer uma máscara, o pai que na lista das compras escreve o gel, ter que voltar para trás porque se esqueceu a máscara, guardar as moedas na mão porque se esqueceu o gel.

Agora, encontros sem abraços e beijos, e a terrível invenção de fazer dos cotovelos mãos e boca, para os fazer esquecer de quando se fincavam para sustentar os braços, que sustentavam as mãos, onde se apoiava o queixo para que se pudesse ver, ouvir e olhar de perto. De muito perto.

Agora, tirar a máscara, de longe, para que as crianças que deixámos há quase três meses se possam recordar dos traços de nós que já não conseguem lembrar, e esfregar as mãos com gel um instante antes e outro depois de as termos dado a alguém a quem precisámos mesmo de as dar.

Agora, perceber os dois metros que as palavras “tive saudades tuas” demoram a percorrer, e os outros tantos que nos separam do “eu também”.

Agora, ter consciência de que a máscara dá protagonismo ao que os olhos sabem dizer, mas que torna invisível um ar acanhado, um sorriso triste, ou uma desilusão.

Agora, ouvir os silêncios provocados pelas máscaras, por falta de saber como dizer só com palavras.

E depois, o que fazer com o corpo que não entende a distância, e insiste em esticar os braços, arquear os dedos, e tocar?

Como preencher o vazio dos corações feitos com as mãos, e o que pôr dentro dos abraços dados no ar?

Como ignorar o que outro olhar mascarado nos diz sobre ser tão urgente eliminar a distância?

Mais do que nunca, precisamos que a criação e a expressão artística nos inundem a vida, traduzindo o que sentimos, preenchendo o espaço vazio que a distância faz, sendo compreensão das emoções e dos sentidos.

Aí encontraremos as pontes e os laços, e esbateremos a perplexidade do corpo, atirado para dentro desta nova fronteira de limites alargados com os quais não foi preparado para viver.

E, até ao momento, ainda distante, de retornarmos ao nosso espaço natural, aprendamos a importância tamanha do toque, e da presença próxima do outro.