Opinião

Adoecer

1 jul 2021 15:45

A dor crónica existe e é ela própria uma doença também por toda a carga de devastação física e psicológica que acarreta

“- Que é que queres ? De que precisas? – repetiu para si mesmo. – De quê? – De não sofrer. De viver – respondeu. (…)
- Viver? Viver como? – perguntou a voz da alma.
- Sim, viver, como antes vivia: bem, de um modo agradável.
- Como vivias antes, bem e agradavelmente? – perguntou a voz.
E ele pôs-se a rever na sua imaginação todos esses melhores momentos da sua vida agradável. Mas, coisa estranha, todos esses melhores momentos da vida agradável lhe pareceriam agora muito diferentes daquilo que então lhe tinham parecido. Todos, excepto as primeiras recordações da infância, havia qualquer coisa de realmente agradável, com a qual seria possível viver se ela voltasse. Mas a pessoa que experimentara esses prazeres já não existe.”
Tolstoi, Lev, A Morte de Ivan Ilitch, Leya/BIS, 2016

Um dia acorda-se doente e a vitalidade que até então fazia esquecer a existência do corpo torna-se numa memória que se revisita fugazmente como uma fotografia.

Convivo há sete anos com dores crónicas. Adormeço sem dor e acordo de madrugada com uma dor indescritível.

Os analgésicos passaram a fazer parte do meu quotidiano sem produzirem qualquer melhoria. Acordar, ser funcional, dormir, com medo de despertar com dores, tornou-se penoso.

Livrar-me do sofrimento passou a ser, aos 43 anos, o meu principal projecto de vida, um projecto que tive de compatibilizar com uma vida profissional activa, a educação de uma filha ainda criança, as obrigações familiares, os amigos, em resumo, com a existência toda.

Confiando por hábito na ciência, demorei algum tempo a consultar o primeiro médico. Acreditava que talvez no dia seguinte melhorasse e tudo não passasse de um desconforto temporário.

Até ao momento em que o calendário me anunciou um ano de dores diárias, e resolvi agir.

Passei da caixa negra do meu combate interior, ao calvário dos diagnósticos ambíguos. Os anos seguintes foram passados em consultórios médicos, exames, remédios e segundas opiniões, sempre regidas por uma resposta comum - "nada no seu corpo justifica a sua dor."

Parti para a via das terapias alternativas - da acupunctura à meditação. A explicação manteve-se com uma nova nuance – "talvez a dor seja de origem emocional ou esteja tudo na sua cabeça".

Uma espécie de resposta de arremesso que parece justificar todos os males sem causa aparente.

Dos diagnósticos ambíguos das medicinas alternativas passei ao conflito interior com a minha incapacidade de, através do autocontrolo, vencer a dor.

Sete anos de dores diárias alteram a personalidade e podem tornar a vida insuportável.

A motivação para a sobrevivência resume-se a conseguir trabalhar para cuidar dos filhos e ter dinheiro para pagar contas.

A alegria encena-se, a impaciência instala-se e perde-se a capacidade de traçar uma ideia de futuro.

O círculo de relações afunila-se. Perde-se eficácia e pessoas pelo caminho. Amplia-se, quando se tem sorte, o conhecimento do amor e da compaixão.

Há seis meses, a minha dor das madrugadas desapareceu. Sem justificação aparente.

Os médicos permanecem sem resposta conclusiva. Sete anos depois o meu projecto de vida é acordar sem dor, depois de passada a madrugada, ao som de um despertador electrónico. É um primeiro esboço de uma ideia de futuro.

A dor crónica existe e é ela própria uma doença também por toda a devastação física e psicológica que acarreta.

Não desistir de a tornar visível e de a expressar talvez seja um dos caminhos para a tentar compreender e para obter a ajuda certa.

Não, não está tudo na nossa cabeça e nem sempre se tem sorte.