Opinião

A dor indízivel no peito de uma mãe

23 out 2025 08:01

Abandonar seria deixar o bebé entregue à sua sorte num qualquer canto recôndito

A cidade acordou em sobressalto. A notícia causou espanto e estranheza e, como sempre acontece quando não sabemos da razão de uma qualquer coisa, desde logo muitos começaram a falar do que não entendiam, mas presumiam saber. Incautos, porque não percebem que quando falam dos outros é de si que falam, bem como do seu modo de pensar o outro. Do que dizem coisa nenhuma da pessoa falada ficamos a saber, contudo sobre os falantes ficamos mais esclarecidos.

À hora a que esta crónica está a ser escrita pouco se sabe para além dos factos objetivos da ocorrência: um bebé recém-nascido foi deixado nesta madrugada de segunda, 20 de outubro, à porta de um quartel de bombeiros. Por ora, sabe-se que está bem de saúde e apresentava ter sido bem cuidado. Sabe-se também que a mãe foi já localizada e trata-se de uma jovem senhora de nacionalidade estrangeira que, antes de entregar o filho junto de uma Instituição na qual confiou porque, e muito bem, presumiu que lhe dariam socorro imediato e o levariam para um hospital onde seria por certo cuidado com saber e desvelo, teve o cuidado de o aconchegar, de lhe deixar fraldas e leite e um saco térmico. 

A palavra “abandono” muito cedo encheu as bocas de azedume de quem noticiou primeiro, e de quem comentou em conversas de ocasião depois. Confesso o meu pudor em repetir tal afirmação. É pejorativo, maledicente, comporta um juízo de valor a montante. Abandonar seria deixar o bebé entregue à sua sorte num qualquer canto recôndito. Esta mãe, ao que tudo indica, cuidou até ao último instante do seu filho. Talvez porque quero continuar a crer na generosidade e bondade humana, atrevo-me a pensar na dor indizível no peito de uma mãe que se vê obrigada a afastar-se de quem ama. 

Não sabemos – só ela o poderá esclarecer – a razão desesperada para o que fez. Certo é que acreditou nas Instituições que suportam um Estado Social que se supõe apoiar os desvalidos e os mais vulneráveis. Acreditou em nós todos. Todos seremos poucos para a apoiar, sem a culpar de uma culpa que poderá nunca ter tido. Todos ainda seremos poucos para tecer uma manta de compaixão para aconchegar quem se viu obrigada a separar-se de quem aprendeu a amar ainda antes de conhecer. 

Seria tão justo que reconhecêssemos sermos todos igualmente arguidos neste caso. Que parássemos por uns breves instantes para refletir o tipo de sociedade que não cria condições para que uma mãe possa acolher junto ao peito um filho amado.

Texto escrito segundo as regras do Novo Acordo Ortográfico de 1990