Opinião
Dançar na praia
Há pequeníssimas ocorrências que nos obrigam a pausar da celeridade dos dias apenas para usufruirmos do que nos é permitido contemplar.
Neste tempo em que tudo acontece tão rápido, em que as notícias que nos chegam são difíceis de aceitar na desumanidade demonstrada pelo poder exercido de modo arbitrário e mesquinho, em que a bússola da civilização parece ter perdido o norte, há pequeníssimas ocorrências que nos obrigam a pausar da celeridade dos dias apenas para usufruirmos do que nos é permitido contemplar.
O verão ainda vinha longe e o areal do Pedrogão estava quase deserto. Soalheiro e ventoso, convidativo para estar por ali sem outro objetivo que fosse para além de estar a fazer nada com o mar por fundo. Na fímbria da rebentação um e outro pescador, respeitosos na distância, a tentar a sorte da frescura de um qualquer fruto do mar para o jantar que a generosidade oceânica lhes entregasse.
A meio de lado nenhum, uma família. Ela, ele e três gaiatos. A ninhada brincava na areia em montes e vales interpretados como tal, outros construídos com as mãos que elevavam montanhas e cavavam vales para os carritos percorreram numa corrida sem vencedores. Ele mediano de idade, anafado, sim, mas ainda sem ser gordo, camisa branca e calça de sarja. Ela de blusa e saia rodada, leve, delicada como as suas formas desenhadas com perfeição tendo por fundo um mar irrequieto.
Ao lado de um saco de onde saíram as traquitanas dos cachopos um aparelho a pilhas, modesto, fazia soar melodia que o vento levava. Ela e ele, ele e ela, cada um com um longo lenço branco na mão. Devia ser leve o tecido, que o vento o esvoaçava.
E dançavam, olhando-se como se o olhar do outro fosse o epicentro deles próprios, atraídos pelo íman da intimidade. Tango, milonga, outra dança qualquer, é difícil de descrever. Apenas sensualidade e movimento. Tocavam-se sem se tocar, acariciavam-se sem que a pele de um tocasse a pele do outro. Beijavam-se, contudo. Não que os lábios de um provassem a maresia da saliva do outro, apenas porque os lenços se tocavam e enrodilhavam umas vezes, outras porque eram velas que se enfunavam a par.
E assim, sem pudor, à vista de todos, sob o brilho de um sol espelhado no mar, faziam amor de um modo como só os amantes são capazes de fazer.
Numa ida à praia, sem outra razão que fosse para além do soltar a imaginação no espelho do mar, por momentos, a rapidez das coisas, a desumanidade das imagens que nos chegam diariamente, a insensatez em que o mundo se transfigura, foram ignoradas pela possibilidade de ver alguém ser feliz tendo tudo o que precisam possuindo tão pouco: um lenço branco, alguém que nos olhe amorosamente e a vontade de dançar.
Texto escrito segundo as regras do Novo Acordo Ortográfico de 1990