Sociedade

Neste Natal, de prenda, não preciso de nada. Já tenho muito

20 dez 2019 09:27

Voluntários e associações de apoio social ajudam na Consoada dos sem-abrigo de Leiria

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Jacinto Silva Duro

A celebração do Nascimento de Cristo, para os cristãos, foi, ao longo dos séculos, um momento de alegria alicerçado na renovação da aliança entre o Messias e as comunidades.

Entre os parcos pertences, como sinal de afecto, procurava-se algo para repartir e manter acesa a chama da partilha desinteressada a quem mais precisa e do amor ao próximo.

Hoje, porém, a Festa da Luz passou a ser uma espécie de competição de luzes e iluminações e a celebração do Cristo, que nasceu sem-abrigo, numa manjedoura, com apenas alguns trapos para se proteger do frio, perdeu-se na voracidade consumista. Mas ainda há quem estenda a mão a quem, pelas voltas da vida, se encontra despojado de tecto.

Numa das arcadas da Avenida Marquês de Pombal, em Leiria, Pedro e Conde trocam palavras sobre o sol que, momentaneamente, neste dia de quase Inverno, lhes aquece os corpos agasalhados em casacos com fechos corridos.

Partilham o lume para acender um cigarro e fazem uma pausa na conversa, olhos perdidos no movimento das pessoas que sobem e descem os passeios, alheias ao olhar de ambos. Vivem na rua e são utentes do Projecto Giros na Rua, da Inpulsar - Associação para o Desenvolvimento Comunitário, de Leiria, que trabalha para a melhoria das condições sócio-sanitárias e de saúde de pessoas em situação de risco.

Pedro, que conta que nasceu há 41 anos no hospital velho de Leiria, explica como irá ser a sua Consoada. Retira do bolso um telemóvel antigo de concha e, com um sonoro ‘ping’, abre a galeria.

Nela, estão várias fotografias do seu lar actual. Uma barraca de plástico azul que ergueu num pinhal junto ao casario, “algures em Leiria”. A guardar os magros pertences, deixou o seu grande amigo, o Tintim, um pequeno cão de pêlo branco encardido, de quem cuida desde cachorrinho.

"Passamos um bocadinho de frio, mas não é muito. Tenho de ter mantas. E, às vezes, chove porque o plástico está furado. Tem um buraco, mas colei-lhe fita-cola. Vai ser assim o meu Natal, o Ano Novo e o ano todo por aí fora." Será um "Natal foleiro". "Mesmo foleiro. Não quero participar nas coisas que estão programadas. Não há cá festas para ninguém.”

Neste Natal, no sapatinho, gostaria que o ajudassem a ter uma prótese dentária, confidencia de lágrimas nos olhos e a voz sumida, num nó na garganta. Sem orçamento para o luxo de ter dentes novos, pediu apoio à Inpulsar e a associação contactou várias clínicas dentárias, uma vez que não tem dotação para financiar o pedido de Pedro. O orçamento foi de 700 euros.

"Notámos discriminação, quando perceberam que seriam para o Pedro. Ele está numa fase muito estável, mas o passado vem sempre ao de cima. Percebemos que seria muito importante para a sua autoestima, melhoria na atitude, e sentir-se mais apresentável", referem os responsáveis da Inpulsar, oferecendo-se para gerir eventuais donativos para a causa.

Em Leiria, Pedro é conhecido como "Pepito", um nome que o deixa em nervos. Tira o Cartão do Cidadão de uma bolsa pendurada à volta do pescoço e aponta para o nome, escrito em caligrafia certinha e bonita: "Pedro José da Silva Gonçalves. É o meu nome!". A mais bonita de todas as festas é o Natal Óculos escuros imaculados, cabelo e barba alvos como a neve, José Conde, vive por aí.

"Em Leiria, conhecem-me por "menino Conde." Já foi feirante e é pai de seis filhos. "Corri o País a vender contentores de camisolas e fatos de treino, em romarias, feiras e festas, mas, desde pequeno que sinto que a mais bonita de todas as festas é o Natal. É uma noite para ser passada com a família." Mestre nas conversas sem tempo e fonte de histórias de vida, no coração guarda as recordações de cachopo, quando a Consoada era feita com as quatro irmãs, à espera das prendas que o Menino Jesus deixava em sapatinhos adormecidos no borralho da lareira.

Na casa, nessa noite, ninguém dormia. "Tenho seis filhos. Quero que eles estejam bem neste dia com as mães. Não vou para casa de nenhum. Vou tentar isolar-me, no meu refúgio, e deitar-me com uma garrafinha de Vinho do Porto... Vai ser uma noite igual a outra qualquer e, no dia de Natal, vou dar um salto à cidade para ver a alegria das crianças e as decorações." Por estes dias, José Conde dedica-se à pintura - naïf, pois claro - e gostaria de apostar na música, dando vida ao futuro melómano que as freiras do Colégio da Cruz da Areia, em Leiria, lhe previram quando era lá aluno.

"Neste Natal, de prenda, não preciso de nada. Já tenho muito. As pessoas têm de se lembrar de que a vida não é um dia apenas, mas uma colecção dos bons momentos que a gente passa… E dos maus também."

Natal Inspulsar

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