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Manel Cruz: "Acima de tudo somos pessoas com inquietude e com vontade de comunicar e a arte existe por causa disso, só"

20 jun 2019 00:00

Canções de Vida Nova e temas mais antigos passaram pelo Festival A Porta.

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Concerto magnífico de Manel Cruz, esta quarta-feira, 19 de Junho, no contexto do Festival A Porta, com canções do novo álbum, Vida Nova, e outros temas, mais antigos, a fechar uma noite especial, que também teve JP Simões (acompanhado por Miguel Nicolau) e o espectáculo Silvar, desenvolvido pelo baterista Ricardo Martins com seis percussionistas da região (António Casal, Filipe Rocha, José Carlos Duarte, Pedro Marques, Renato Dias e Vasco Silva) e executado no foyer do Teatro José Lúcio da Silva.

Dois dias antes do concerto, entre ensaios, Manel Cruz falou ao JORNAL DE LEIRIA, por telefone, num registo sempre directo e ligado às emoções. Tal como a música que faz. 

A entrevista completa pode ser lida no papel, na edição do Jornal de Leiria, hoje, quinta-feira, 20 de Junho.

Está correcto dizer que o Manel Cruz descobre depois dos 40 anos que é mais músico do que outra coisa qualquer?
Não me sinto mais músico, sinto é que consegui perceber que a música é a minha profissão. Dá-me subsistência e tento fazer as coisas o melhor possível, gosto daquilo que faço, mas existe um compromisso. Mas sinto-me uma pessoa, antes de mais, com outros interesses – e gosto de sentir que são tudo portas abertas a muitos níveis. Não sinto que seja mais músico. Se calhar do ponto de vista prático acabo por ser, mas sinto-me sempre mais um artista, naquele sentido em que o meu ofício é criar e tudo o resto são ferramentas.

Resistiu durante algum tempo à ideia de que a música também é uma profissão?
Resisti, porque não me queria sentir comprometido. Primeiro, não tinha a necessidade de estar comprometido como tenho agora depois de ter filhos. E sempre joguei muito à defesa face à minha ignorância e às minhas dúvidas. Deixei-me andar e ia fazendo as coisas sempre tentando estar o menos comprometido possível. Neste momento é uma certeza que quero fazer da música a minha profissão, até um dia achar que não. Mas sinto-me com uma certeza que nunca senti.

As dúvidas e inseguranças em relação à música, nomeadamente quanto ao prazer de tocar ao vivo ou ao facto de ser um espaço de liberdade mas também de trabalho e regras, estão resolvidas?
Se calhar não é uma questão de estarem resolvidas, é mais uma questão de pôr a mão na massa. A questão de tocar ao vivo era uma questão muito concreta de gostar de tocar, mas não me apetecer estar comprometido com isso porque não gostava sempre. E quando decides que é essa a tua profissão, arranjas maneira de aprender a gostar daquilo que fazes. E enfrentares, e resolveres os problemas, e começares a tirar prazer não só da coisa em si (numa primeira fase) mas de estares a conseguir lidar com. Tens de aceitar um conjunto de regras e lidar com elas, à tua maneira. A minha liberdade não passa por fazer aquilo que me apetece, passa por conquistar algum tempo do meu dia para fazer o que me apetece. Essa é a minha ideia de liberdade: conquistar através do compromisso, do trabalho e das regras, e conquistar na prisão, os meus momentos de liberdade.

Quer explicar melhor a insatisfação com o palco?
Tem a ver com uma ideia simples de ser algo que envolve a tua pessoa física. Se estiver só o teu trabalho em cheque, a tua cabeça e o teu corpo são meros funcionários das ideias e da forma como lidas com as coisas. Quando envolve a tua pessoa física, aí há uma outra coisa, há uma arte performativa, há uma codificação de ti para um suporte que envolve a tua acção física. E aí há todo um trabalho a fazer, que é um misto de actor com pessoa. Não interessa muito o que é, o que interessa é que é o início de um novo trabalho que não é uma fuga para frente. É um enfrentar dessas coisas. A partir do momento em que assumes que isso é parte da tua vida, fazê-lo bem não é só o resultado é também o processo de descoberta dessa tua nova faceta. E é engraçado, depois de tantos anos de estar em palco, sentir que estou no início dessa relação.

Melhor do que há 20 anos ou só diferente?
É diferente, mas sinto-me melhor, sem dúvida. Porque sinto-me mais em paz. Nomeadamente, com o erro. Se te empenhas e dás tudo o que tens, o erro é aceite por ti próprio. Se andas a fugir para a frente e erras, sentes que o erro é fruto da preguiça, da falta de coragem. No fundo, tudo tem a ver com o prémio que dás a ti próprio e o prémio que dás a ti próprio é a tua consciência, é o teu brio. Não é propriamente ser perfeito. Se calhar ando mais à procura da imperfeição do que da perfeição. Ando à procura de contrariar essa ideia de perfeição porque nessa ideia de perfeição não me vou encontrar, de certeza, vou encontrar-me nas minhas imperfeições. Mas aceitar essas imperfeições depende de facto de seres honesto contigo próprio e para seres honesto tens de te entregar.

A música, as artes plásticas e a escrita são ferramentas com que se expressa de maneira diferente, ou seja, cada uma delas é necessária para que o artista, ou criativo, se revele por completo?
Sim. Existe o pensamento, existe a linguagem e existem as ferramentas. E estão todas no mesmo estojo, seja a borracha, seja o lápis, seja a caneta, seja a fita-cola, seja a máquina fotográfica. São tudo ferramentas. No fundo, antes da ideia, há a nossa inquietude. E para satisfazer a nossa inquietude e descobrir uma forma de exorcizar essa inquietude, se calhar, não é muito importante se vais fazer um filme, se vais fazer uma música. O mais importante é comunicares. Acima de tudo somos pessoas com inquietude e com vontade de comunicar e a arte existe por causa disso, só. Como um esgoto e ao mesmo tempo como uma central de reciclagem. É um espaço para tudo aquilo que não cabe no nosso quotidiano e nas regras, é um espaço para sermos verdadeiramente livres e livres a todos os níveis, seja na escolha das ferramentas, seja no processo, seja no papel que decides que isso ocupa na tua vida. E no meu caso as coisas caminharam para aqui, para eu ter prazer numa certa multidisciplinaridade, mas isso não me traz mais eficácia ou facilidade na comunicação. É o que é.

Em cada um desses contextos as ideias materializam-se de maneira diferente?
Sim, isso sinto. Essa promiscuidade na arte é só vantajosa, não necessariamente porque concretiza, mas porque amplia. Poderes dizer que uma música é castanha. Não sabes se a outra pessoa vai perceber o que estás a dizer, mas estás a expandir a comunicação, a criar um novo desafio.

Escrever um livro, de prosa ou poesia, está nos planos, agora ou no longo prazo?
Não sei. Há muitas coisas que penso, vou fazer isto, vou fazer aquilo, não sei quê, mas nunca faço nada que não faça. Quando há um impulso muito grande para fazer uma coisa, faço. Quando não há, não faz sentido pôr isso nos meus planos. No fundo, acho que procuro uma ideia de honestidade, de tentar perceber por que é que faço determinada coisa. Nem que a resposta seja porque é um impulso. Tudo, em última instância, vai sempre dar ao prazer, nem que seja um prazer sofrido. Vai sempre dar a uma relação com alguma coisa. Tenho uma gaveta enorme de ideias que me angustiou durante muito tempo, neste momento, acho que senti que essa gaveta, se não for mais, vai ter um papel muito importante, que é o tempo em que eu abro a gaveta e vou curtir durante uma tarde. Em que posso aproveitar o dia como um dia meu, em que não tenho qualquer tipo de obrigação de tornar a tarde produtiva. Vou visitar a gaveta, e vou curtir a gaveta e sonhar que vou fazer isto e fazer mil coisas, naquela tarde faço mil projectos, no dia a seguir isso tudo desapareceu. E essa tarde que eu passei, com o passar dos anos, percebi que tem de ser uma coisa em si. Foi uma tarde que passei comigo. Não pode ser subvalorizado só pelo facto de que não produziu nada para a sociedade, porque eu já faço esse papel noutras coisas. Tenho de ter tempo para as minhas colecções de borboletas e para não fazer nada.

Chega a este álbum, Vida Nova, também por aceitar transformações no processo criativo, desde destruir ideias ou deixá-las na tal gaveta até ao horário no estúdio tipo função pública?
Há duas coisas que estão no motor de tudo. Uma delas, exactamente igual às outras pessoas todas: quero ser aceite, quero ganhar o meu dinheiro, quero ser autónomo, quero estar funcional nesta sociedade. Outra delas, quero fazer as coisas que gosto, ter espaço para o meu ego. Adoro criar, adoro música, adoro desenhar. E quando te comprometes com coisas porque isso também é o teu trabalho, a tua parte criativa passa a ser uma parte muito pequena. E tu queres que pelo menos o pouco tempo que tens para criar verdadeiramente e para estares mesmo a curtir seja tempo efectivo e de qualidade. Não queres ser um escravo total desta vida e o que acontece é que muitas das vezes estares comprometido com uma coisa tira-te tempo. E há esse equívoco: as pessoas pensam “Ele quer ser livre, não quer estar envolvidos com instituições”. É uma visão muito superficial. Não tem a ver com questões ideológicas, de não seres consumista ou de não estares agarrado à tecnologia, não tem a ver com isso, tem a ver com a gestão da tua vida, que é diferente de toda a gente. Tens de dar à sociedade alguma coisa, mas chega a uma altura em que dizes “Já estou a dar à sociedade que chegue, agora quero um bocado para mim”. Tens de estar a olhar para a frente e tens de perder tempo a esquematizar as coisas, e a ser cerebral, a organizares-te, para poderes ter tempo de liberdade. E acho que o que mudou em mim foi a perspectiva. Eu também consigo ser normal. Consigo ter paz como as outras pessoas, sentir que tenho um emprego. No fundo, é isso que um gajo quer.

A entrevista completa com Manel Cruz pode ser lida no papel, na edição do Jornal de Leiria, hoje, quinta-feira, 20 de Junho.