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Cartas para Leiria e para o Futuro, Isabel Jácome: “Começar por cada um de nós, a mudar”

9 jul 2020 09:09

“O que mais agradeço é a esperança no futuro, esse futuro da cidade que é papel de construção de todos nós, pelo nosso contributo e participação, pela nossa atenção e pela nossa palavra”

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Isabel Jácome, enfermeira
DR

Hoje, Isabel Jácome escreve a Ângelo Lima Bastos.

Este é um projecto de troca epistolar, organizado em corrente: 12 pessoas da cidade procedem ao envio de uma carta dirigida a uma outra pessoa que vive num bairro diferente, explorando a cidade como referência, tendo em conta expectativas de um amanhã. O que querem melhorar, o que acham importante conversar, o que é urgente repensar. Abrem uma conversa pública entre pessoas que se conhecem e não se conhecem, mas que partilham o espaço de uma cidade agora.

As Cartas Para Leiria e para o Futuro integram a programação de MAPAS, que decorre em Leiria de 1 a 12 de Julho de 2020, com o JORNAL DE LEIRIA como media partner.

Para acompanhar diariamente, online, no site do JORNAL DE LEIRIA e no site de MAPAS (https://www.m-a-p-a-s.com/).

"Leiria, 4 de julho de 2020

Cara Sara, Caro Ângelo, Cara Leiria,

Neste projecto fantástico e nesta ligação a que aderimos, comunicando em cadeia, partilho, Sara, essa sua tendência de ser optimista e positiva. Gostei tanto de a ler!...

Que bom podermos viver acreditando e sonhando, sem deixarmos simultaneamente de ser realistas! A vida, para mim e sob este prisma é uma enorme oportunidade de aprendizagem, de partilha e de amor. Devemos e podemos participar nela, individualmente e em conjunto. E devemos aprender, sobretudo, a agradecer.

Para lhe responder à pergunta “porque sou enfermeira”, digo-lhe apenas que, “ser enfermeira”, me permite “estar com” as pessoas. Individualmente, em grupos, nas comunidades… e nesse “estar com” e nessa proximidade intrínseca, ajudar, no possível e gradualmente, a que cada um possa compreender o dom da vida, relembrando essa importância de agradecer.

É um trabalho que se faz com amor e tempo. E, só o amor permite essa proximidade, essa compreensão e as mudanças que considerarmos necessárias. Essas mudanças surgirão na proporção dessa compreensão e interiorização. Só assim se muda. Se vai mudando. Se evolui. É nisto que acredito. Pensar e construir saúde, a fazer futuro, futuro construído a cada passo, a cada momento, com tempo. Com disponibilidade. Com atenção. Saúde física e mental. A saúde de hoje, a saúde do futuro!

Sendo a minha área de especialização a saúde infantil e pediatria tenho a oportunidade de trabalhar com pais, com crianças, com jovens. Baseio-me fundamentalmente, na promoção e apoio para a Parentalidade Positiva e Consciente, basilar para a mudança da sociedade que procuramos. Não há crianças sem pais, ou respectivos cuidadores. É deles que as nossas crianças bebem todo o exemplo. E estes pais/cuidadores, na sociedade em que vivemos, estão a precisar de ajuda. Ajuda para parar, reflectir, reactivar a sua intuição e disponibilizar mais tempo para “estar com”: os filhos, os respectivos companheiros/as, a família, os amigos e… consigo próprios. Tempo de qualidade. Tempo presente. Tempo. E Amor. Atenção. Gratidão.

Perdoe Sara, o ar solene que ponho nestas palavras. Todos criticamos a sociedade em que vivemos. Temos que começar por cada um de nós, a mudar. E nunca é tarde. Acredito ser possível! Acredito nesta geração que procura crescer partilhando esta forma de “estar com, amor”.

É difícil? Por vezes sim. Muito. E escreveria aqui bastante mais sobre o tanto que precisamos e podemos fazer, devagar, a cada dia. Assim se constrói futuro, o futuro que desejamos, em que devemos acreditar e pelo qual devemos lutar, trabalhar!

Leiria ajudou-me directa e indirectamente neste crescimento pessoal e profissional. Nem sempre foi fácil! Acolheu-me há 32 anos! Tinha 29. Nascida em Lisboa, origem paterna na região, Leiria é há muito para mim, sinónimo de fuga ao bulício e de tempo expandido. E hoje agradeço Leiria, mesmo os momentos mais difíceis sobretudo pela distância de amigos e lugares que foram os meus na infância, juventude.

Os meus filhos cresceram nesta cidade. O mais novo, já aqui nasceu. E se o bulício cresceu naturalmente também em Leira, com o passar destes anos, o tempo continuou, para mim, a ser mais tempo do que seria numa cidade grande.

Leiria cresceu. Em bulício, também. Mas cresceu principalmente em qualidade. A qualidade dos espaços novos proporcionados, por exemplo, pelo Pólis que liga em extensão a cidade, permitindo proximidade ao rio, às suas margens, ao que a cidade possa manter das suas origens e, orgulhosamente, de bucólico… mas também a proximidade entre as tantas pessoas que dele usufruem.

Leiria tem também procurado recuperar património antigo que faz jus à sua história e aos seus antepassados. Claro que me faz todo o sentido, Sara, o poema de Francisco Rodrigues Lobo que deliciosamente citou, ligando a cidade à natureza. Mas, citando-o, a Sara ligou também a sintonia da cidade à cultura e à arte. Cultura e arte que a cidade nos procura oferecer, sob mil formas de que podemos e devemos usufruir.

Teria tanto mais a agradecer a Leiria, ainda mais agora, em tempo de pandemia, em que “nos temos portado tão bem!”…mas o que mais agradeço é a esperança no futuro, esse futuro da cidade que é papel de construção de todos nós, pelo nosso contributo e participação, pela nossa atenção e pela nossa palavra, aqui com importância relevante…

Espero, Sara, ter respondido de alguma forma ao que me perguntou, sobre mim, a minha profissão, a “nossa” cidade, nunca esquecendo que as cidades são feitas por pessoas e são elas que promovem e cuidam dos seus espaços, património e oportunidades criadas.

Agora a si, Ângelo, médico e filósofo, pessoa também emblemática da nossa cidade, cumprimento-o de forma carinhosa e grata. Quantos médicos são grandes como os nossos escritores, quantos estão associados à nossa cidade? Obrigada pelo seu contributo, não só através da medicina e por tanto que tem escrito, mas também por ser assumidamente filósofo.

Acredito profundamente na importância da filosofia, Ângelo e deixo-lhe como questões, de forma entusiasta e feliz: Será possível dissociar a filosofia da medicina, da saúde, da promoção da saúde, da reflexão sobre a vida, das palavras que dizemos, das próprias cidades e da vida que vamos construindo?

Desejo-vos, Sara, Ângelo e Leiria que esta pandemia que nos assola e preocupa a todos, ao invés do tão falado “distanciamento social”, promova uma cada vez maior proximidade entre as pessoas, como diz o Gui… no sentido real da entreajuda necessária à manutenção e promoção da nossa saúde, desenvolvimento pessoal e social, cumprindo, claro, com atenção, cuidado e rigor, o necessário distanciamento físico, para quebrar esta cadeia de contaminação.

É a minha vez de agradecer, todas as palavras. E aqui, nesta intenção tão nobre e extraordinária de nos escrevermos “cartas”, as palavras podem ser como mãos que se tocam, a pedir licença para se darem. Mãos prontas a unirem-se, quiçá com a força que todos precisamos para nos compreendermos melhor e nos entreajudarmos.

Um enorme abraço a todos

Isabel Jácome"

Cartas anteriores:
1. Patrícia Martins
2. Jorge Vaz Dias
3. Hugo Ferreira
4. Maria Miguel Ferreira
5. Carlos Matos
6. Xana Vieira
7. Thainá Braz
8. Sara Marques da Cruz