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Cartas para Leiria e para o Futuro, Sara Marques da Cruz: "Cidade com braços compridos e acolhedores"

8 jul 2020 09:10

"De horizontes amplos, de raízes fundas, com braços compridos e acolhedores. Dou-me conta, nesta escrita pouco meditada, que descrevo uma árvore. É isso. É isso que Leiria deve ser"

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Sara Marques da Cruz, investigadora
DR

Hoje, Sara Marques da Cruz escreve a Isabel Jácome.

Este é um projecto de troca epistolar, organizado em corrente: 12 pessoas da cidade procedem ao envio de uma carta dirigida a uma outra pessoa que vive num bairro diferente, explorando a cidade como referência, tendo em conta expectativas de um amanhã. O que querem melhorar, o que acham importante conversar, o que é urgente repensar. Abrem uma conversa pública entre pessoas que se conhecem e não se conhecem, mas que partilham o espaço de uma cidade agora.

As Cartas Para Leiria e para o Futuro integram a programação de MAPAS, que decorre em Leiria de 1 a 12 de Julho de 2020, com o JORNAL DE LEIRIA como media partner.

Para acompanhar diariamente, online, no site do JORNAL DE LEIRIA e no site de MAPAS (https://www.m-a-p-a-s.com/).

"Leiria, 2 de julho de 2020

Cara Thainá, Cara Isabel, Cara Leiria,

Obrigada, Thainá, pelas tuas palavras. Espero que Leiria continue a acolher-te como desejas e como mereces. Partilho do teu optimismo. Não posso ser outra coisa que não positiva e optimista. Um filho faz-nos olhar para o futuro, faz-nos trabalhar por ele. Apesar de duvidar da capacidade colectiva do ser humano para fazer sábios balanços ou aprender lições frutíferas, confio cegamente na nossa capacidade de adaptação. Vamos lá chegar, desfrutemos o caminho…

Ao contrário do que é para ti, Leiria não me é nova. É velha, densa, pesada, enraizada em mim. Vivi alguns anos numa grande metrópole, em Madrid. Lá, tive que aprender a falar alto para me fazer ouvir, no meio do alvoroço alegre mas constante de um outro tipo de cidade… Quando vinha matar saudades ao berço, Leiria parecia-me pequenina, escura, silenciosa. A luz amarelada do castelo pouco alumiava. Mas eu sentia que nem essa luz era necessária – por Leiria, até de olhos fechados caminho.

Na Leiria da infância do meu pai viviam cerca de cinco mil almas. As brincadeiras de rua eram interrompidas apenas pela rara passagem de um automóvel. A Leiria da infância do meu filho tem muitos milhares de habitantes. Assemelha-se mais a Cloé, uma das Cidades Invisíveis de Italo Calvino, na qual as pessoas não se conhecem, e que “ao verem-se imaginam mil coisas umas das outras, os encontros que poderiam verificar-se entre elas, as conversas, as surpresas, as carícias, as ferroadas”.

Existe um meio-termo? Quiçá esse meio-termo seja a polis grega, idealizada por Aristóteles, com dez mil cidadãos que se conhecem todos e, por tanto, se responsabilizam pelo destino comum de todos. A política como busca da felicidade coletiva. Mas, e os que não são cidadãos?

Isabel, o que te fez ser enfermeira? Brindo à tua coragem e à nobreza da profissão que escolheste. Nós, que não sabemos fazer o que fazes, que dependemos de ti, da tua perícia, e da tua compaixão, estamos gratos. Obrigada Isabel.

Percebo que te sentes bem na natureza. Dizes que gostas da cidade, quando está calma. Também o leiriense Francisco Rodrigues Lobo gostava da natureza, e não a dissociava da cidade. Leiria era para ele, há quatrocentos e alguns anos, “Esta formosa terra /Situada numa planície fresca e deleitosa/ A uma rocha íngreme encostada/ Donde o Castelo a mostra mais formosa/ De dois alegres rios rodeada/ E de fresca verdura graciosa/ Vales ao redor verdes sombrios/ Que cortam mansamente os brandos rios”.

Reconhecemos Leiria nas suas palavras? E a Leiria do futuro?

Eu desejo, Thainá e Isabel, uma cidade de horizontes amplos, de raízes fundas, com braços compridos e acolhedores. Dou-me conta, nesta escrita pouco meditada, que descrevo uma árvore. É isso. É isso que Leiria deve ser. Encontremo-nos, minhas recentes amigas, espero que em breve, à sua gloriosa sombra.

Sara Marques da Cruz

PS: Esta é uma cadeia de cartas, e uma carta sem post scriptum não é mais que um vulgar email. Andamos todos amedrontados (mesmo que lhe chamemos outra coisa qualquer). Mas conversar, escrever, gritar, sussurrar, partilhar, tudo isso amacia o medo. Vamos fazê-lo mais?"

Cartas anteriores:
1. Patrícia Martins
2. Jorge Vaz Dias
3. Hugo Ferreira
4. Maria Miguel Ferreira
5. Carlos Matos
6. Alexandra Vieira
7. Thainá Braz