Viver

A angústia do programador na era da cultura canibal

30 jul 2016 00:00

Demasiados eventos? Público insuficiente? Novas prioridades? Falta de qualidade? Os programadores culturais da cidade reflectem sobre os motivos por que é tão difícil encher uma sala de espectáculos em Leiria

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No mês de Maio, o Texas Bar recebeu o trio brasileiro O Terno. Uma referência da música independente no Brasil, aposta MTV em 2012 e lista dos melhores álbuns para a versão com sotaque português da revista Rolling Stone.

Apareceram menos de 40 pessoas no concerto em Barreiros, Amor. Duas semanas depois, a Preguiça Associação Criativa trouxe ao Teatro Miguel Franco a banda bracarense peixe:avião, que tem álbum novo, aclamado pela crítica, e continua a gozar de prestígio suficiente para frequentar o palco Antena 3 do Super Bock Super Rock. Venderam-se pouco mais de 100 bilhetes.

E na semana seguinte, dois projectos de Leiria – Nice Weather For Ducks e Les Crazy Coconuts – apresentaram-se no Teatro José Lúcio da Silva, numa data que pretendia celebrar o segundo disco dos primeiros e a crescente popularidade do rock feito em Leiria, que se ouve cada vez com maior insistência nos principais festivais de Verão e rádios nacionais.

De novo, a afluência de público deixou a desejar, se imaginarmos 500 cadeiras vazias num anfiteatro com 700 lugares. Antes dizia-se que não havia nada para fazer, será que agora, afinal, o problema é outro, ou seja, o oposto? Vivemos a era da cultura canibal?

Não matem já o mensageiro, estamos todos a navegar na maionese, e a tentar perceber por que motivo, por cada evento bem sucedido em Leiria, como, entre outros, o espectáculo de Rodrigo Amarante, há dois, três ou quatro que ficam praticamente às moscas.

Hugo Ferreira, o fundador da Omnichord Records, editora com sede em Leiria que trabalha com Nice Weather For Ducks e Les Crazy Coconuts, oferece-nos uma explicação digital: "Não há eventos a mais, as prioridades é que estão a mudar", afirma.

"As redes sociais mudaram tudo e estamos numa fase de transição que é provavelmente a pior para os eventos culturais. A internet está disponível em todo o lado, por que é que vais ver alguma coisa na tua cidade quando tens o mundo nas tuas mãos?" Tudo hoje é mais volátil e efémero, o mesmo acontece na programação das artes, defende o homem da Omnichord.

"Actualmente o que atrai público é a capacidade de determinado produto ou acto mover pessoas, mais do que a qualidade", sustenta. E não é uma questão financeira, porque o dinheiro continua a fazer mexer o mundo, aqui e em toda a parte. "Em qualquer noite se vêem os bares com muita gente.

O público é mais chamado por outro tipo de actividades, como por exemplo convívios de esplanada, e não tanto para o consumo da cultura, o que não acontece só em Leiria. Há cada vez mais a noção de que a cultura é de borla e está disponível por via informática no computador ou no telemóvel", argumenta.

Para o músico Jonas Gonçalves, que esteve por trás do concerto de O Terno no Texas Bar, e tem organizado inúmeros outros na região, o importante é que os promotores não desistam. "Não acho que exista excesso de oferta, há público interessado, mas não faz questão de estar presente todos os dias", responde. Soluções? Oferecer algo mais, trabalhar melhor a divulgação.

E confiar no instinto, que já trouxe bandas internacionais a tocar nos arredores de Alcobaça através da Operação Crestunfo e do Coz Village, modelo que agora se repete com o projecto Mel Pelas Aldeias. "Admiro-os e gosto de os trazer a tocar à minha localidade e conhecê-los. Torna-se gratificante", explica ao JORNAL DE LEIRIA.

Na opinião de Ricardo Graça, presidente da Preguiça Associação Criativa, embora variadíssimas pessoas “digam que a cultura é uma coisa muito importante para a cidade, vivem bem sem ela”. Por este motivo “não a fomentam, nem com a sua presença, quanto mais com o seu dinheiro”, acrescenta.

“Porque não têm curiosidade, não querem ouvir um refrão do qual não conhecem a letra, preferem a CMTV a uma tela ou uma selfie a uma peça de teatro”. Para ampliar a dimensão em que tudo isto acontece, “é preciso educar para a descoberta e para o querer- saber. É preciso dinheiro para melhorar a qualidade da oferta cultural. É preciso alguma coordenação entre os programadores para definir uma estratégia mais eficaz ou pelo menos evitar atropelamentos”, diz. Por exemplo, entre serviços municipais e os privados.

No sábado, dia 16, a ecO bateu todos os recordes de participação no Cinema Vadio, com mais de 500 pessoas a assistirem à projecção gratuita, e ao livre, do filme Ovelha Choné, em Leiria. Mas a associação, com um longo historial na cidade, também tem a sua dose de momentos aquém das expectativas.

"Se as coisas forem gratuitas, as pessoas têm uma predisposição diferente para ir. Quando têm um custo, mesmo simbólico, há mais resistência, e isto é uma questão de escola e de preparação das pessoas para perceberem que a cultura tem de ser paga”, afirma Nuno Granja, um dos dirigentes da ecO.

"Quando estás a programar estás sempre no fio da navalha, nunca tens a certeza se vais ter público. Por vezes fazemos opções e abdicamos do conceito inicial porque achamos que por determinado caminho vamos conseguir chegar a determinado tipo de público, e depois não é assim", nota.

As audiências e a confiança no programador levam anos a construir, mas há um elo que continua por materializar, o que liga aos estudantes do ensino superior. "Não conseguir chegar a 1% do público do IPL é algo que me faz confusão. Como é que não se chega àquelas pessoas, por que é que estas pessoas não aparecem?", questiona Nuno Granja.

Vitória Condeço, da companhia de teatro O Nariz, lembra que os vários criadores, produtores e grupos ligados à oferta cultural teriam a ganhar se conseguissem coordenar esforços através de um calendário destinado a evitar a concorrência entre diferentes iniciativas.

"Há alturas do ano em que as actividades se sobrepõem. Por outro lado, em minha opinião, Leiria não é assim tão grande, não somos assim tantos", afirma, frisando que faz falta distinguir o que é arte e o que é entretenimento.

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