Entrevista

João Francisco Gomes: "Há uma cultura de encobrimento na Igreja Católica que ajuda a que os abusos sexuais proliferem"

14 out 2021 13:00

Jornalista e autor do livro "Roma, temos um problema", que explica como a Igreja Católica lidou com dois mil anos de abusos sexuais, diz que os dez casos conhecidos em Portugal são a ponta do iceberg

João Francisco Gomes: "até se pode chegar ao fim de uma investigação e concluir que nada aconteceu em Portugal. Mas, nem a Igreja acredita nisso!" 
Ricardo Graça
Jacinto Silva Duro

Inicia o seu livro Roma, Temos um problema, com a constatação de que o abuso sexual, de adultos e menores, na Igreja Católica, atravessa toda a história do cristianismo. Faz várias abordagens ao tema e menciona as próprias Escrituras onde há avisos sérios para esse problema. Há aproveitamento da autoridade da instituição pelos abusadores?
O abuso sexual não é um problema exclusivo da Igreja, aliás, o contexto onde ele é mais comum são as relações familiares, mas na Igreja Católica acontece com uma frequência considerável e recebe da instituição uma resposta que tem sido marcada pelo encobrimento, desde há dois mil anos. Enquanto instituição, a Igreja sempre dependeu da "superioridade moral" dos membros do clero, para estabelecer a sua autoridade terrena. Numa comunidade cristã, o poder do sacerdote advém de uma aura de incorruptibilidade moral. É "um homem de Deus", "um homem de confiança", um homem de valores inatacáveis que, pela sua relação com Deus, está num plano superior, a meio caminho entre a Humanidade e o divino. A existência de abuso sexual na Igreja, mancharia esta reputação e a instituição, nuns momentos, esforçou-se por punir de modo vigoroso e, noutros, por encobrir. 

Por vezes, a comunidade recusa-se mesmo a acreditar nas vítimas. No livro, cita um caso ocorrido em Paião, Figueira da Foz, pouco antes do 25 de Abril, onde isso aconteceu.
É a aura da incorruptibilidade moral. Se ela se desfizer, nada resta para que a instituição se mantenha em pé. A Igreja sobreviveu à queda de países e de impérios, como é que se mantém em pé, após três milénios? Sendo de tal forma importante para as comunidades que, no momento onde lhe são apontadas falhas humanas, o primeiro instinto é recusar acreditar. É inegável a importância social da Igreja. Não consigo imaginar o que seria das respostas sociais aos mais pobres e indefesos, em Portugal, se, de um dia para o outro, parasse toda a sua acção socio-caritativa. O que acontece é que ela sempre teve muito poder sobre a comunidade. Molda o modo como se pensa na sociedade europeia e esse poder advém da ideia de superioridade e autoridade morais, ao ponto de se sentir no direito de dizer aos seus fiéis, o que devem fazer na sua vida privada e o que devem fazer na cama. Por que razão a Igreja insiste em regulamentar o que as pessoas podem ou não fazer na sua intimidade?

No seu livro e no conjunto de reportagens que escreveu com Sónia Simões para o Observador há uma palavra transversal: "silêncio". Silêncio das vítimas e das famílias...
A natureza dos crimes sexuais leva a isso, sejam ou não cometidos por membros do clero. Cito algumas estatísticas no livro, e há crimes de abuso sexual, em especial contra crianças, que nunca são denunciados às autoridades. Aquilo que chega ao nosso conhecimento é uma pequena amostra dos crimes sexuais, e que nos permite fazer uma projecção da sua prevalência na sociedade. É um crime que tem um estigma e que, psicologicamente, marca muito. No caso português, não basta falar dos crimes que hoje acontecem, é preciso andar para trás. No período do Estado Novo, a Igreja Católica era uma força com um poder terreno muito maior do que muitas autoridades civis. Numa pequena aldeia, vila ou bairro deste País, o padre tinha mais importância do que o presidente da junta. Hoje, já não olhamos para um sacerdote como sendo uma pessoa fundamental da comunidade e estes escândalos têm contribuído, para esse enfraquecimento. Numa comunidade onde o padre é uma "autoridade soberana", onde o crime quase nunca tem testemunhas, os julgamentos acabam por ser a palavra de um contra a do outro. Durante muito tempo não houve qualquer sensibilidade para perceber o impacto psicológico que o abuso tem sobre uma criança. Isto é, uma criança que tenha sofrido um abuso sexual vai acusar o padre? Em princípio, não. No caso da Figueira da Foz, de que demos conta em 2019, assim que a primeira vítima disse à mãe e ao pai que aquilo tinha acontece, a primeira reacção foi "não aconteceu, tu percebeste mal. Nunca na vida, o padre faria uma coisa dessas!". Quando, por fim, o pai testemunhou o abuso, o grande medo foi que ninguém acreditasse. T

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