Opinião

Um ano mais fraterno e com menos estupidez humana

27 dez 2018 00:00

Em 2019, vimos, assim, Bolsonaro conquistar um Brasil farto de corrupção e de criminalidade, Matteo Salvini ser eleito em Itália com uma retórica anti-Europa e carregada de xenofobia.

O Editorial da última edição do Jornal de Leiria terminava com uma citação do livro 21 Lições para o Século XXI, do filósofo israelita Yuval Noah Harari, uma ideia que se pode aplicar para evocar o ano que agora termina: “se investirmos muito na Inteligência Artificial e pouco no desenvolvimento da consciência humana, a sofisticada inteligência artificial dos computadores só servirá para dar mais poder à estupidez natural dos seres humanos”.

A verdade é que a sofisticação da inteligência artificial nos está a levar à ‘ditadura do algoritmo’, que, sem nos darmos conta, gere de forma cada vez mais assustadora as nossas vidas, desde as compras para a casa ou do carro novo, passando por coisas tão simples como os livros que lemos, a música que ouvimos ou os destinos de férias que escolhemos.

Com a nossa ajuda, que oferecemos de mão beijada, sem saber bem a quem, uma imensidão de dados pessoais, os super-algoritmos criados nos principais centros tecnológicos do Mundo retribuem com sugestões tailor-made sobre tudo e mais alguma coisa, condicionando o nosso pensamento e influenciando decisões.

O problema começa, ou agrava-se, dependendo da perspectiva, quando também a informação que recebemos, muita dela sem qualquer fundo de verdade, é seleccionada à medida, numa lógica de ‘lavagem ao cérebro’ tão característica dos países onde os regimes autocráticos sobrevivem ancorados na propaganda oficial e na limitação da liberdade de expressão.

Ou seja, com a tal sofisticação tecnológica como aliada, combinada com um nível de conhecimento cada vez mais supérfluo e fútil, alguns dos principais embaixadores da estupidez humana afirmaram-se em 2018 de uma forma impensável há alguns anos, dando continuidade a um caminho que já colocou no poder personalidades como Donald Trump ou Viktor Orbán, e levou a Grã Bretanha a dizer sim ao Brexit.

Numa clara demonstração de falta de memória, a Europa, mas não só, começa a ceder aos mesmos argumentos populistas que fizeram eleger Hitler e que estiveram na base da adoração, por milhões de pessoas, de ícones fascistas como Mussolini e Franco, três nomes sinónimos de morte, preconceito, sofrimento e devastação.

Em 2019, vimos, assim, Bolsonaro conquistar um Brasil farto de corrupção e de criminalidade, Matteo Salvini ser eleito em Itália com uma retórica anti-Europa e carregada de xenofobia, a extremadireira a chegar a um parlamento regional em Espanha, na Andaluzia, e o partido anti-migratório Democratas Suecos a conseguir o terceiro lugar nas eleições legislativas, ganhando 18% do eleitorado.

São dados eleitorais que corroboram um estudo do jornal Guardian que conclui que um em cada quatro europeus vota em partidos populistas, e que estes aumentaram os seus votos de 7% para 25% nos últimos 20 anos, nos 31 países analisados.

Ou seja, parece que, indiferentes ao que o passado nos ensinou, caminhamos para trás como os caranguejos na direcção de um tempo que foi de horror e que se pensava estar ultrapassado, eventualmente por as inéditas sete décadas sem guerra na Europa (excepção para os Balcãs) nos terem feito crer que a paz é um dado adquirido.

Cirurgicamente explorados e amplificados pelos tais populistas que começam a chegar ao poder, os medos que nos movem são agora outros e chegam de fora, daqueles países onde os europeus e os americanos se foram intrometer sob a capa hipócrita da defesa dos Direitos Humanos, mas que todos sabem ter sido pelos interesses económicos.

É o terrorismo, os migrantes que vêm roubar os empregos, a criminalidade que vai aumentar. Medos sobre os quais o populismo tem cavalgado, como bem referia Frei Fernando Ventura em entrevista na edição passada deste jornal: “Hoje, o que impulsiona as reacções sociais é o medo, não é a solidariedade. A melhor forma de controlar alguém, ou um país, é conhecer-lhe os medos”.

Terminamos, assim, 2018, cheios dos medos que querem que tenhamos e que ajudarão mais e mais populistas a ganhar poder, mesmo que o que eles encarnam seja justificador de receios muito maiores. Mas a falta de discernimento das populações, cada vez com mais informação disponível mas menos conhecedoras e capazes de reflexão, leva ao terreno fértil da demagogia, um espaço que tem sido sobejamente explorado com a ajuda das mais avançadas tecnologias da comunicação.

Como já diversas personalidades alertaram, estamos a deixar-nos ir sem percebermos que nos estão a encaminhar, explorando o que Zygmunt Bauman, filósofo polaco falecido recentemente, referia ser a “principal contradição da condição existencial”, que é, nas suas palavras, “a tensão perpétua entre dois valores, segurança e liberdade, igualmente cobiçados e indispensáveis a uma vida feliz”.

Não poderemos, portanto, abdicar da liberdade em favor da segurança ilusória que nos estão a tentar vender. Há que lutar pelas duas, começando por não deixar que o medo nos tolhe o raciocínio e permita que mais cretinos cheguem ao poder.

A equipa do Jornal de Leiria deseja a todos os seus leitores e amigos, mas também aos que não se revêem no nosso trabalho, um novo ano realmente novo. Mais fraterno e com menos estupidez humana.