Opinião

Serviços mínimos de felicidade

14 jan 2016 00:00

Procuramos paz e tranquilidade, quando talvez devêssemos ambicionar agitação e desassossego.

Estamos tão habituados àquilo que sempre fomos que nem nos passa pela cabeça que poderíamos tentar ser algo diferente, algo novo. Parece que nos conformamos em ser uma mera repetição de nós próprios, talvez por a previsibilidade proporcionar a ilusão de que controlamos alguma coisa da nossa existência, que dominamos minimamente o nosso pequeno canto de mundo, que a nossa vida pode ser aquilo que desejamos. Habituamo-nos à previsibilidade, tal como um bebé que apenas tem alguns dias de vida e já sabe que se chorar o tempo suficiente e com a intensidade adequada, é previsível que lhe limpem o rabo ou lhe dêem leite. Aprendemos isto nos primeiros dias de vida e habituamo-nos, nunca mais paramos de chorar. Nunca mais deixamos de ser bebés. Bebés crescidos que acabam por compatibilizar e adequar os seus desejos, os seus sonhos, as suas ambições, as suas necessidades, àquilo que prevêem que poderão efectivamente alcançar, àquilo que é mais plausível e previsível que aconteça; abdicam de perseguir tudo o que poderiam alcançar para se resignarem a desejar aquilo que crêem realizável e exequível. Bebés que crescem e desistem de ser uma estrela pop universal mega adorada para se entreterem com um novo jogo de karaoke que os transforma em estrelas caseiras de imitação, adoradas assimassim por amigos bondosos. É como se existisse uma espécie de central sindical reaccionária dentro de cada um de nós, incapaz de reivindicar evolução e crescimento e mudança mas pretendendo a simples manutenção do que já se alcançou; e sob a influência desta central sindical, passamos a viver numa espécie de patamar mínimo de desejo e felicidade, acantonados nos nossos direitos adquiridos; habituamo-nos a esse patamar mínimo, seguro e previsível, controlável; abdicamos de ambicionar e perseguir uma felicidade esplendorosa, inesperada e possivelmente aniquiladora, impossível de manter indefinidamente, para nos acomodarmos a uma amostra de felicidade mínima mas estável, a uma espécie de serviços mínimos de felicidade, sem risco nem chama nem combustão. Procuramos paz e tranquilidade, quando talvez devêssemos ambicionar agitação e desassossego. Pretendemos viver cada dia como se fosse o último mas, na verdade, vivemos cada dia como se fosse o antepenúltimo (ou pior: como bebés, que nem sequer sabem que o número de dias que têm pela frente é finito). Distraímo-nos com as palavras sofisticadas que designam e rotulam o que somos («procrastino, logo existo») e escrevemos textos inconsequentes usando essas palavras. Textos que pro-vocam em quem os lê um encolher de ombros e uma questão: «Porquê o plural? Que mania têm os escritores, sempre a disfarçarem o “eu” com um “nós”.»

*escritor