Opinião

Sermos bons

3 dez 2017 00:00

Numa discussão talvez inócua que piquei online acerca da Indústria da Música em Portugal apercebi-me de uma coisa:

 todos pensamos ser bons ou muito bons no que fazemos e que se não somos melhor sucedidos na nossa carreira ou profissão, isso deve-se à falta de oportunidade, contactos e “apoios”.

Claro está que é avisado nunca sermos demasiadamente honestos acerca das nossas reais capacidades, todos dizemos, afinal que somos bons e que merecemos aquele contrato, mas o nosso erro reside exatamente em duas coisas: se somos bons ou muito bons, nada temos a aprender com os outros (aliás esses outros é que não nos tem nada para ensinar e se estão em tal sítio foi porque beneficiaram de um apoio obscuro qualquer) não podemos reclamar mérito quando não o entendemos ou aceitamos.

E esse é um problema profundo no trabalho, nas escolas, na Assembleia, nas Artes. Fica por fazer, ou melhor, por ir fazendo, uma auto-análise do que é isto de sermos bons e se este paradigma não nos provoca um atraso pessoal e social, que constitui um preço bem maior a pagar, no fim das contas.

Por causa de um problema com a minha editora de discos (Alma Mater) fui averiguar junto às entidades competentes as causas do mesmo. Evitei partir para a ignorância online e descarregar a minha fúria perante uma situação estranha, injusta e profissionalmente danosa.

Não só fui extremamente bem tratado e informado, como passámos eu e o meu sócio a fazer parte dessas organizações de modo não só a ter um lugar à mesa com quem precisamos de resolver e ajustar as coisas; mas, quem sabe, indirectamente, puxar algum equilíbrio e justiça para a música e edição independente em Portugal, na qual trabalhamos.

Fúrias aparte, tal acção desencadeou saudáveis comentários, que, para além disso, me fizeram verificar e reflectir sobre o que dinamiza o sucesso ou, pelo contrário, o que o frusta. Não é novidade para ninguém que vivemos num mundo competitivo.

A todos os níveis. Os nossos objectivos são traçados pelo nosso instinto de sobrevivência, mas também pela gestão das nossas expectativas. Vivendo em grupo, temos, no entanto, e sempre, de percorrer um caminho pessoal que nos permita fazer parte do grupo, e se conseguirmos subir nessa escada que são as nossas vidas profissionais.

A gestão dessa expectativa é feita por nós. O que os outros esperam de nós pode ser enganoso para todos, porque, muitas vezes, o que os outros esperam de nós é que nos falhemos e que se abra uma janela por onde eles possam entrar na nossa vida.

Mas se o Inferno são os outros, essa noção é gerada exactamente pela incapacidade total que temos em nos avaliar a nós mesmos. Às vezes, apetece pensar simples e dividir as coisas em metades fechadas.

Se uma banda, se um artista, se um estudante ou professor, se um gestor ou uma gestora, público ou privado, se acha sempre injustiçado e se acha que fez mesmo tudo para estar noutro sitio mais elevado (o que muitas vezes, não é verdade) deve então fazer-se a pergunta, ou fazerem-na por ele/ela, se é, se somos realmente bons naquilo que fazemos. Talvez seja esse o problema.

Vejam-se os cantores dos talent shows e as bandas de garagem que não ganharam o concurso para abrir para banda X, ou que foram punidos por desafinar. Raramente ou nunca (que eu tenha visto) há consciência de que os outros ganham porque são…melhores que nós e é dessa sexta certeza que se constrói caracter para mais.

Os abraços dos amigos ou as palavras dos pais são justas pela amizade e filiação, mas também não nos dizem a verdade. No meu caso, mesmo que não fosse “profissional da música” continuaria a fazê-la por gosto. Conseguiria, em definitivo, conciliar com a minha outra actividade que teria e mesmo que isso aconteça (nada neste mundo é garantido) continuarei ligado à música, por outros meios, simplesmente porque gosto.

Sem expectativas, sem planos, sem pensar que o sucesso e o trabalho dos outros diminui o meu em algo coisa. Que disparate. Como, felizmente, sou profissional há coisas que tenho de fazer e dizer e não me recrimino por isso, nem aos outros. Falhar é a ordem do dia, acertar é sempre mais um passo, nunca o passo final.

Ser bom é, pelo menos, perceber isso. Gostar mais de ser o que somos, como somos, pegar numa guitarra fora de horas e fazer barulho, concorrer aos jogos florais, ir a um concerto e ser do público.

Fora isso está toda a vida real para a qual nunca seremos bons o suficiente mas que passa bem melhor se o gosto na nossa boca ao invés de amargo, for doce.

*músico e vocaista de Moonspell