Opinião

Quem define o que nos define?

2 out 2020 13:17

Perdidos num eterno movimento de rotação sobre si próprios, sobre os seus interesses, uma espuma amorfa que, no entanto, nos define. Que meteu uma máscara cirúrgica ao sorriso com que outrora encarávamos a manhã no espelho.

Existem quase dois séculos que separam as Sátiras do poeta romano Juvenal do Inglês Douglas Murray que, em Setembro de 2019, publicou o livro a Insanidade das Massas (ed. Desassossego/ Saída de Emergência).

O primeiro era “apenas” um poeta. Já o nosso contemporâneo não é designado tão simplesmente : é um conservador de Direita. Em nota de rodapé vem a sua homossexualidade, o seu estado civil (casado) e a sua branca biologia.

Juvenal perguntava quem vigiava os vigias.

Murray faz a mesma pergunta.

Perante as complexidades da época que vivemos e que pensamos controlar, apesar de nunca termos sido prisioneiros tão fáceis, quase dóceis da desinformação reinante que distanciou as pessoas ainda mais que a possibilidade de uma infecção.

Quando trocámos o preto e branco dos livros pelo led colorido dos ecrãs, deixámo-nos invadir por uma lassitude, uma sensação de poder que nos inebriou.

Como se o mundo, a biologia, as limitações, a verdade fosse uma espécie de plasticina que moldaríamos conforme as nossas necessidades e opiniões. E tanto mexemos, tanto amassámos que no fim, cansados da brincadeira, arrumámos o grotesco das nossas conquistas numa caixa de papelão molhado.

Nietzsche falava de um mundo que cairia na lógica judaico-cristã da culpa e da acusação. Segundo o filólogo alemão, essa dinâmica triunfaria.

Adiantava também que algo de muito importante desapareceria da sociedade. O perdão católico, a capacidade de perdoar.

Por aquilo que alguma vez dissemos ou fizemos nem que fosse há vinte e tal anos atrás, somos como aqueles patinhos de feira sobre os quais disparamos as pressões de ar.

Somos alvos de toda gente com uma ligação online e com o poder que ela aventa ao cancro narcísico que consome a necessidade. É apenas uma questão de tempo.

Talvez haja um futuro melhor para os nosso filhos. Mas para isso muito do que somos agora tem de morrer. Ser decapitado, estaca no coração, queimado na fogueira como um vampiro.

No tempo em que o nosso sufixo preferido é o ismo, as contas são fáceis de fazer.

Cada vez subtraímos mais ao resto e em vez de multiplicar dividimos por um.

São assim os políticos, os bancos, os influencers, os comediantes, os criativos de Silicon Valley, os presidentes, as nações, os artistas.

Perdidos num eterno movimento de rotação sobre si próprios, sobre os seus interesses, uma espuma amorfa que, no entanto, nos define. Que meteu uma máscara cirúrgica ao sorriso com que outrora encarávamos a manhã no espelho.

Aquilo que nos define é simples: nós somos o vírus. Fomos nós que nos inventámos assim. Desculpa filho.