Opinião

Quando silenciamos grupos, a democracia falha

5 fev 2021 13:50

A sobrevivência das democracias não passa apenas por pôr fim à violência física e incluir sem saber aprender com a diferença. Passa por questionar as hierarquias que determinam quem conta (a história).

A crise pandémica que herdámos de 2020 não expôs apenas vulnerabilidades biológicas.

Violências estruturais e fragilidades das democracias ocidentais vieram à superfície.

Ao mesmo tempo que vozes progressistas souberam mobilizar-se, o populismo de extrema direita, compatível com o projeto neoliberal e inconciliável com os valores do modelo social europeu, reduziu a complexidade a um discurso monolítico, polarizado e de compreensão imediata: nós versus eles.

Deste “nós” imaginado, que sustenta uma narrativa antissistema carregada de debilidades, são excluídos, com maior ou menor veemência consoante conveniência estratégica, refugiados, imigrantes, ciganos, negros e discursos feministas, antirracistas e anticapitalistas.

Há quem veja nas mobilizações antirracistas mais recentes, onde cabem a polémica das estátuas e outras manifestações, a origem do problema, alegando a polarização que promoveram.

Esse argumento reflete muito mais o privilégio de quem o usa do que a realidade sociológica e a história que nos conduziu aqui.

A polarização só é recente para quem pode escolher virar a cara e não sente no corpo os efeitos da violência estrutural, cujos alvos estão há muito identificados.

A sobrevivência das democracias não passa apenas por pôr fim à violência física e incluir sem saber aprender com a diferença. Passa por questionar as hierarquias que determinam quem conta (a história).

Quando aceitamos uma só narrativa, falhamos coletivamente. É por isso que, em dia de eleições presidenciais, a falta de diversidade dos painéis de comentadores nas nossas televisões não é só um problema das feministas e dos coletivos antirracistas.

Sem uma reflexão combinada a partir de múltiplos lugares de enunciação, seremos incapazes de compreender a complexidade.

O silenciamento de determinados grupos reflete-se em todos/as nós, porque eliminamos variáveis, simplificamos equações e perdemos ferramentas de compreensão do mundo e de transformação social progressista.

Mantem-se a distribuição do privilégio e facilita-se a vida aos que esgrimem argumentos falaciosos, inventando monstros e nomes como “ideologia de género” e “marxismo cultural”.

Pouco antes de 2020 terminar, assisti a um filme que marcou a minha viragem do ano. AmarElo. É tudo para ontem, do incrível rapper brasileiro Emicida, é uma declaração de amor, resistência e luta, que humaniza e fortalece em tempos de separação física, e uma aula de história, onde cabe a complexidade que foi eliminada dos livros.

Este documentário não denuncia apenas o branqueamento da história, devolve-nos pedaços da mesma a partir de um roteiro onde o samba encontra o rap e nós encontramos ativistas, artistas e académicos extraordinários, que desapareceram sob o peso das estruturas patriarcais e coloniais.

Não ganham apenas as figuras prestigiadas. AmarElo mostra um mundo que extravasa a narrativa dos vencedores.

É desse mundo alargado, onde cabem os saberes de quem travou lutas desiguais, que precisamos para defender a democracia hoje.

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990