Opinião

O que pinta Morandi?

27 jan 2022 15:45

Viveu toda sua vida num pequeno apartamento com a mãe e as três irmãs solteiras

Acho que… continuo a acreditar na arte pela arte e não na arte pela religião, pela justiça social ou pela glória nacional. Nada é mais estranho para mim do que uma arte que se propõe servir outros propósitos além daqueles implícitos na obra de arte em si mesma.”
Giorgio Morandi

Não me recordo da primeira vez que vi um quadro de Giorgio Morandi.

Terá sido talvez nalgum artigo de jornal ou numa das cenas do filme La Dolce Vita de Federico Fellini em que Marcello (Mastroianni) e Steiner (Alain Cluny) se aproximam de uma das suas naturezas-mortas interrompendo subitamente o ambiente de glamour, brilho e trivialidade da Roma decadente dos anos 50 que os rodeia, para a admirar apenas.

Num breve diálogo com Marcello, Steiner dirá do quadro de Morandi «Ah, sim, ele é o meu pintor favorito. Os objectos são inundados de uma luz melancólica e ainda assim parecem pintados com um desprendimento, uma precisão e um rigor que os torna quase tangíveis. Podemos dizer que é uma arte onde nada é fortuito.»

Giorgio Morandi nasceu em Bolonha em 1890 e morreria na mesma cidade 74 anos depois.

Viveu toda sua vida num pequeno apartamento com a mãe e as três irmãs solteiras, e do quarto/atelier em que sempre habitou (viajou apenas cerca de três vezes ao longo da vida e a Suíça foi o seu único destino fora de Itália) sairia a obra sui generis que fez dele um dos maiores pintores italianos do século XX.

Fugindo ao destino de empresário traçado pelo pai, Morandi formou-se na Academia de Belas Artes de Bolonha, onde mais tarde será professor.

Influenciado inicialmente por Cézanne, Derain, Picasso e Braque, centra depois a sua atenção na grande tradição pictórica italiana, estudando Giotto, Paolo Uccello e Piero della Francesca. Interessa-se fugazmente pela pintura futurista e vive uma breve fase metafísica.

A partir de 1920 inicia, porém, um percurso pessoal de grande coerência dedicando a sua pintura apenas a três temas: as naturezas-mortas, as paisagens e as flores.

Apaixonado por pequenos objectos quotidianos, enche o seu exíguo quarto/estúdio de garrafas de vários tamanhos, pequenas taças, potes e outros recipientes que dispõe obsessivamente em elaboradas combinações de forma, luz e cor matizadas por sucessivas camadas de pó que lhes trazem opacidade, mutismo e mistério.

Cumprida essa elaborada arquitectura mental, que chegava a durar várias semanas, parte para a tela e pinta as naturezas-mortas que o distinguem, criando um universo próprio que dialoga com o passado e inaugura um percurso.

Ensaia sucessivas disposições de objectos com subtis variações de cor e de tamanho, justapostas contra um fundo neutro com ambíguos sombreados, que interrogam a noção de perspectiva e que parecem fazer dos seus quadros uma meditação sobre a arte em si mesma.

Terminei o ano de 2021 a ver pela primeira vez uma exposição da obra de Giorgio Morandi que esteve patente da Fundação Mapfre em Madrid.

Em toda a sua produção artística apenas dois dos seus quadros representam figuras humanas.

Olhar para as suas naturezas-mortas é aceitar uma proposta íntima e instigante de questionamento ou de deleite, um passo à frente de qualquer interpretação.