Opinião

O direito a representar

9 fev 2023 16:33

Nenhuma sociedade se abrirá à diversidade sem reconhecer a validade de perguntas e clamores estranhos aos velhos padrões monoculturais

Na música que dá título ao álbum AmarElo, a voz de Emicida combina-se com as de Pablo Vittar, artista e drag queen, e Majur, cantora que transita entre os universos masculino e feminino, numa explosão de beleza, amor e resistência.

A esperança como ingrediente de luta é anunciada num sample de Belchior, referência da MPB: “E tenho comigo pensado, Deus é brasileiro e anda do meu lado; e assim já não posso sofrer no ano passado; tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro; ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”.

Momentos depois, em mais uma afirmação política, canta-se: “Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes; achar que essas mazelas me definem é o pior dos crimes; é dar o troféu pro nosso algoz e fazer nóis sumir, aí”.

Vem isto a propósito do debate que ocorreu na sequência da corajosa intervenção de Keila Brasil no Teatro São Luiz, que pode ser lida como exigência laboral e, de forma mais ampla, como reivindicação do direito a representar o mundo de forma a caber nele não apenas como vítima, mas como membro pleno.

Este texto não é sobre Keila Brasil, que fala por si, nem sobre teatro, é sobre o direito, distribuído de forma muito desigual, de refletir sobre o mundo a partir da nossa presença e das questões, da linguagem e das classificações que escolhemos.

Nenhuma sociedade se abrirá à diversidade sem reconhecer a validade de perguntas e clamores estranhos aos velhos padrões monoculturais. Não cabe sempre à periferia responder ao centro. Tem direito a levantar questões.

Não estamos todos/as no mesmo barco à espera que a sociedade nos acolha. Se muitas variáveis distinguem os nossos trajetos, uma delas é o grau diferenciado de exposição às diferentes formas de violência legitimadas pelo capitalismo, pelo heteropatriarcado e pelo colonialismo/racismo.

Se até aqui nada é simples, complica-se mais quando os eixos de opressão estrutural se sobrepõem de forma complexa e, dentro das lutas sociais, a indignação com a violência sobre corpos desumanizados convive com a incapacidade de aceitar como válidos os termos do debate introduzidos pelos sujeitos desses corpos.

Percebi nas últimas semanas que é possível contestar a ideia de meritocracia no contexto de lutas pela dignidade laboral em sentido amplo, reconhecendo que a sociedade não proporciona oportunidades iguais, e invocar questões de mérito para deslegitimar uma luta protagonizada por pessoas trans, que reivindicam o direito a contar a própria história. Não faz sentido.

Nos anos 1980, Gayatri Spivak, uma académica internacionalmente reconhecida, formulou uma questão que continua a ser levantada no âmbito de discussões sobre colonialismo, racismo e sexismo (que só para os mais distraídos são novas): “Pode a subalterna falar?”

Neste contexto, a subalterna não é a oprimida, é aquela que é silenciada pela ordem dominante, a que não tem direito a existir e, quando existe, é apenas como história de violência, como se não fosse mais do que a marca do opressor. Aprendamos com AmarElo (a arte continua viva): há muitas pessoas a falar, lidemos com o nosso desconforto, vamos ouvir.