Opinião

Música | Alice Coltrane: o som que passa por nós

24 out 2025 08:12

A sua revolução não foi estética: foi espiritual. Deu ao jazz uma dimensão de transcendência, de ponte entre o Ocidente e o Oriente

Alice Coltrane é uma das figuras mais singulares da música do século XX. Como Betty Davis, também ela carregava um apelido maior do que a sua própria sombra, um sobrenome que a ofuscou durante anos, tal era a dimensão do homem com quem viveu. Só anos mais tarde a sua obra começou a ser escutada com o respeito que sempre mereceu.

Considerada a mãe do jazz espiritual, a sua música habita um território raro, sem fronteiras nem rótulos. Parece suspender o tempo e o espaço, como se cada nota fosse uma respiração, um gesto de introspecção. Filha de Detroit, pianista de formação clássica, discípula de Bud Powell e Thelonious Monk, Alice McLeod cresceu entre o gospel e o i, mas o seu destino não estava preso à terra. Nos clubes da cidade, entre pianos gastos e fumo espesso, aprendeu que o jazz podia ser também uma forma de oração.

Quando, em 1965, se cruzou com John Coltrane, não foi apenas amor, foi um chamamento. Com ele partilhou discos e visões Expression, Meditations, Infinity e, depois da morte de John, em 1967, recolheu-se no silêncio durante anos. Fundou um ashram hindu em Los Angeles e adotou o novo nome Turiyasangitananda, “aquela cuja música é a canção do divino”, e começou a compor para orquestras invisíveis. Álbuns como Journey in Satchidananda (1971) e Universal Consciousness (1972) já não pertencem apenas ao jazz: são pontes entre mundos, entre o raga indiano, o blues, o órgão litúrgico, a harpa e o cosmos.

Journey in Satchidananda é mais do que um disco: é um portal. O contrabaixo caminha devagar, o saxofone de Pharoah Sanders embala o ritmo, a harpa acende a luz. Alice, ao piano ou ao órgão, desenha caminhos para uma nova dimensão, onde o som já não ocupa espaço, respira. É jazz, sim, mas também é oração, meditação e mantra.

Em 2017, vieram à luz as gravações de The Ecstatic Music of Alice Coltrane Turiyasangitananda, talvez a sua obra mais íntima. São registros das manhãs no seu templo, em Sai Anantam Ashram: voz e harpa em comunhão interior, uma música feita para ser partilhada com o silêncio e o eu interior.

Alice Coltrane prosseguiu, à sua maneira, a busca infinita do marido, o encontro com o som absoluto, aquele que não vem de nós, mas passa por nós. A sua revolução não foi estética: foi espiritual. Deu ao jazz uma dimensão de transcendência, de ponte entre o Ocidente e o Oriente, entre o corpo e o espírito, entre a nota e o silêncio. E se a fonoteca serve para isto, para guardar sons que nos recordam quem fomos e quem poderíamos ser, então Alice Coltrane merece uma das prateleiras mais alta. Uma daquelas onde o pó nunca chega.