Opinião

Literatura | Gramática da fantasia - Medo do medo...

14 mar 2020 20:00

Tinha já há uns dias um texto escrito para esta coluna de opinião. Um texto bonito e ritmado  que falava de livros, de Direitos Humanos e do respeito entre homens e mulheres

Era um texto que recusava e criticava alarmismos e o caos instalado pelo bicho papão que a todos assusta e que está na ordem do dia, na boca de todos, no rádio dos carros e na televisão.

O meu texto falava de arte na comunidade, da semana da leitura, nos milhares de miúdos e graúdos a ler por aí, nos escritores e nos piqueniques de livros nas escolas e em espaço público...

Falava também dos milhares de miúdos que nunca ouviram falar no vírus do bicho papão de que todos tem medo, mas que fogem do papão da guerra, do mar, daqueles que lhes fecham fronteiras e  não lhes oferecem casa nem colo, falava dos seus pais e da angústia dos sem casa e dos sem terra, que não tem medo de vírus papões porque medos maiores enfrentam, em busca de um futuro que  temem nunca chegar a ter... o texto que tinha escrito era uma espécie de patchwork de pensamentos, que recusava alarmismos e bichos papões, quando havia em pleno século XXI tantas mulheres que se esfolavam a trabalhar fora e dentro de casa e não eram reconhecidas nem no salário, tão pouco pelos maridos, ou por outras mulheres tiranas como elas só, que se juntavam em jantares tão supérfluos como as suas motivações...como se ser mulher e lutar por dignidade e direitos fosse soltar-se em histeria e jantares...

O meu texto falava de justiça, de liberdade, dos livros e da arte e no seu poder de transformação ...falava de cidadania e de democracia...Mas parece ter deixado de fazer sentido, perante o medo que paralisa o ocidental mundo...

Deste lado ninguém já ninguém quer saber dos que fogem da guerra e das ditaduras, nem dos miúdos sem colo e sem terra,  nem das mulheres que morrem porque ousaram fazer-se ouvir e reivindicar direitos e igualdade...

Aqui há as bolhas de cada um, há as corridas açambarcadoras às máscaras, ao gel desinfetante, às despensas e há depósitos de combustível atestados...há conversas de café, há contestação, há contra e desinformação... há os cumprimentos com os cotovelos e com as pontas dos pés...

Bem e já que vamos ficar todos de quarentena, esperemos que algum dos nossos deuses nos proteja e aproveitemos para ler muito, estar com os outros e encontrar forças para o que aí vem e que não parece ser bom...

Termino com a poesia da Capicua, não tanto por medo, mas pelo medo paralisante do medo : ...

Agarro a mala,
Fecho o condomínio,
Olho por cima do ombro,
defendo o meu domínio,
Protejo a propriedade que é privada e invade-me a vontade de por grade à volta da realidade, do país e da cidade,
Do meu corpo e identidade,
Da casa e da sociedade,
Família e cara-metade…
Eu tenho tanto medo…
Nós temos tanto medo…
Eu tenho tanto medo...“
Espero daqui a um mês estar a escrever-vos de livros e de liberdade e que todo este medo não tenha passado de um susto.
Capicua

Artigo escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990