Opinião

Literatura | A Mancha Humana

8 mar 2020 10:30

No afã de ler os autores portugueses do século XX – que são muitos e bons – vou deixando (cada vez mais) para trás os estrangeiros, nomeadamente os da cultura anglo-saxónica que, muitas vezes por obrigação, tive de ler da Faculdade. 

Felizmente há vozes jovens e exteriores que nos vão sugerindo isto e aquilo e foi o que me aconteceu com A Mancha Humana do autor, Philip Roth (1933-2018).

Toda a obra gira em torno da personagem principal, Coleman Silk, judeu, professor universitário de estudos clássicos e reitor do Athena College, que, no final da carreira, se vê forçado a pedir a demissão por ter, sem qualquer propósito, usado a palavra – spook (com o duplo significado de fantasma e de esquisito, preto) – relativamente a umas alunas negras que nem conhecia por nunca terem aparecido nas suas aulas.

Por isso, fora acusado de racismo, o que muito lhe doeu já que nenhum dos seus colegas da faculdade saíra em sua defesa e também porque acredita que a sua mulher, mãe dos seus quatro filhos, terá morrido por não ter aguentado o choque.

A ação desenrola-se a partir do Verão de 1998, altura em que o segredo do Presidente Clinton/Miss Lewinsky vem a lume. «Foi o Verão em que o pénis de um presidente esteve na cabeça de toda a gente e vida, em toda a sua despudorada obscenidade, confundiu uma vez mais a América.»

Também Coleman, agora com 71 anos, tinha um segredo que confidenciou com o seu vizinho Nathan Zuckerman – o narrador – escritor e também ele judeu: ele mantinha um caso com uma empregada de limpeza, de 34 anos, analfabeta.

Não se pense que nos vamos deliciar a ler sobre o caso Clinton. Este aparece, como outros temas muito mais duros e marcantes da História da América – a guerra do Vietname e a decorrente Perturbação Pós-Traumática dos veteranos de guerra, aqui tão bem representada pela violenta e louca personagem Les Farley, que será determinante no desfecho da narrativa; o melting pot que é a Améria; a  liberdade – o grande e principal objetivo de vida de Coleman que, nascido de uma família negra, é branco, atlético, «bonito, encantador, inteligente … com os teus olhos verdes e as tuas pestanas compridas…» e como tal se mantém em todas as grandes etapas da sua vida: um segredo que guarda das namoradas, dos colegas da universidade, da própria mulher e dos seus filhos e que o leva a renunciar à família de origem.

O pai acusa-o de assassinar a mãe «em nome do seu exaltante conceito de liberdade» (…) «És branco como a neve, mas comportas-te como um escravo»; o racismo – o grande estigma da História da América e a grande ironia que serve de base alargada do romance: Coleman, que sempre se assumiu e comportou como um branco, acaba por ser manchado na sua notável vida com o rótulo indelével de racista.

Obrigatório referir dois aspetos literários: a metáfora das gralhas – as galhas livres vs. a gralha engaiolada; e a surpreendente explicação da mancha humana - «nós deixamos uma mancha, deixamos m rasto, deixamos a nossa marca. Impureza, crueldade, mau trato, erro, excremento, sémen. Está em todos. Sopro interior. Inerente. Determinante. (…) É por isso que toda a purificação é anedota.»

Obra de arte. A ler com a mente aberta.