Opinião
Letras | Roteiro dos Afetos Maternos de Pedro Biscaia
Um livro que toca realidades trágicas, contado de forma muito natural tendo o amor das mães como pano de fundo
Figura que nos habituámos a ver cá por Leiria, embora nado e criado na Figueira da Foz, o Pedro Biscaia. Professor de História – o que traz muita sabedoria – durante anos e, por tê-lo sido por muito tempo na mesma escola, não teve como evitar tornar-se-lhe timoneiro – acontece! – (uma escola é um imenso barco que enfrenta as mais diversas marés) assim absorvendo tanto do contacto plural com jovens e adultos: tantas vivências diferentes que nos afetam, quase nos moldam.
Não só na Escola, como também na Política – incapaz de não se entregar à inquietação que o dia-a-dia nos traz, talvez para opinar, talvez para contradizer – vamos também lê-lo nos jornais.
Desta vez editou um livro (Âncora Editora, 2025). E não digo “escreveu” porque segundo nos disse, há muito que “escreve para a gaveta”. Não é um romance, nem uma novela, mas também não entra na categoria dos contos. Traz-nos um conjunto de oito narrativas autónomas mas ligadas – passe o paradoxo – pelo tempo (todas decorrem entre a dita primavera marcelista e o PREC), e pelo espaço (todas têm ligação a Vila Nova de Jericó, local imaginado onde vamos encontrar tudo o que se acredita que exista numa povoação do interior: o pinhal, as habitações da classe média, os bairros minúsculos sem água nem sanitários, uma Quinta de férias de gente rica e até uma Sociedade Filarmónica com Biblioteca e tudo).
É neste arco espácio-temporal que vamos ficar a saber como foi a vida de oito mulheres, a diferente educação que tiveram, as suas alegrias, quase sempre breves, os seus dramas, as aflições por que passaram, os amores que por vezes (pouco) as acalentaram, com a presença constante e inabalável do amor pelos seus filhos; amor esse também vivido de diferentes modos, se bem que sempre muito poderoso, muito marcante – como sói ser o amor das mães.
À medida que vão sendo apresentadas as histórias de vida de cada uma destas mulheres, vai o leitor notando a presença de alguém a quem vão sendo narradas – um narratário? sempre o mesmo? Veremos no decurso da última história. Curioso é que cada vida é contada por um narrador diferente: ou pela própria, ou pelo/a filho/a; são portanto, oito narradores diferentes, cada um ao seu estilo. E dentro de cada uma dessas vidas – marcadas pela dor, pela ausência, pela perda, pela pobreza – há um forte traço sociológico (mais que literário) que nos reporta, a nós leitores, para marcos sociais daqueles tempos (e destes…) como foram a repressão, a guerra colonial, a miséria e o analfabetismo, a violência doméstica, a prostituição, o racismo, o drama dos “retornados”, a vivência da deficiência e outros... – que não só dramáticos, salpicados pela alegre vivência da infância, das brincadeiras, dos amigos – e muito “pedagogicamente” a referência histórica às medidas que foram sendo tomadas para responder a esses males, esses sofrimentos vividos.
Um livro que toca realidades trágicas, contado de forma muito natural tendo o amor das mães como pano de fundo.