Opinião

Letras | No centenário de Isabel da Nóbrega

14 nov 2025 08:38

Uma mulher livre que não precisava de um futuro Nobel para se tornar (re)conhecida. Aconteceu exatamente o contrário

Leio em O Cânone, organizado por António M. Feijó et al para a Tinta da China, 2020 (p. 283) “os mecanismos discursivos que causaram a exclusão ou a marginalidade das mulheres em relação a um cânone português de autoria predominantemente masculina.” E são muitos: o silenciamento (a censura) do conteúdo político de obras que tratam das desigualdades de género e questões feministas (…) o clima autoritário e de exclusão imposto sobre as mulheres de letras, a não reimpressão das suas obras que as tornou inacessíveis a um público mais alargado e obstou à criação de uma tradição literária feminina.

Contam-se pelas dezenas as mulheres escritoras que, no século XX, enfrentando toda a espécie de dificuldades: o “mau nome”, a fome e o exílio, escreveram em revistas e jornais crónicas, contos, poesia, reportagens e completavam a sua arte escrevendo novelas, peças de teatro, poesia, traduzindo. Completamente desconhecidas, ignoradas, esquecidas.

Num país onde se lê pouco e pouco se conhece da história da nossa literatura, as celebrações de centenários ficam reservados aos homens – nem todos, lembremo-nos da pobreza de celebração do centenário de Jorge de Sena – e de mulheres, ficamo-nos por Sophia e um pouco por Agustina…

Exceptuando a revista do Expresso que em Março nos ofereceu uma completíssima resenha da vida da escritora pela mão de Christiana Martins, e dois elegantíssimos textos de G. de Oliveira Martins no saudoso Jornal de Letras, o centenário do nascimento de Isabel passou despercebido. Não admira: mulher e, mais ainda, forçada a ser esquecida pelas conhecidas circunstâncias do nosso Nobel.

Notabilizou-se como cronista na imprensa, na rádio e na televisão. Fez parte da fundação de A Capital em 1968 e assinou mais de três mil crónicas, algumas reunidas no livro Quadratim (1976). Em 1952 publica o primeiro livro, Os Anjos e os Homens, e em 1955 a peça de teatro O Filho Pródigo ou o Amor Difícil, apresentada no Teatro Nacional D. Maria II. Em 1964, com o livro Viver com os Outros influenciado pelo nouveau roman, alcança o reconhecimento do público e da crítica, obtendo o prémio Camilo Castelo Branco, à data considerado o maior prémio literário em Portugal. Foi tradutora do francês e do inglês e escreveu literatura infantil.

Maria Isabel Gonçalves nasceu em Lisboa em junho de 1925, filha da alta burguesia intelectual. Casou cedo e aos vinte tinha três filhos. Intrépida, em plenos anos 50, encanta-se pela sabedoria do crítico João Gaspar Simões com quem viveu mais de dez anos para o que teve de abdicar dos filhos.

Uma mulher livre que não precisava de um futuro Nobel para se tornar (re)conhecida. Aconteceu exatamente o contrário. Ela reconhece o talento de Saramago, “o rapaz que escrevia as badanas” na Capital e fez dele o escritor que é. E ele sabe disso e dedica-lhe todos os livros que escreveu (os melhores do seu acervo literário) enquanto viveram juntos entre 70 e 86. “Para a Isabel, tão inseparável deste livro como da minha vida.” – foi uma das dedicatórias. Que depois, ingrato, apagou.