Opinião

Letras | Miguel Sousa Tavares (2021): Último olhar ou a visão do que nos rodeia

3 jan 2022 19:50

A construção enxuta e variada do recente Último olhar não dececionará os leitores

A expectativa de um novo romance de Miguel Sousa Tavares [MST] tornou-se um momento alto: habituou os leitores a uma qualidade literária (séria? comercial?...), sem abandonar as envolventes (contextuais ou ‘históricas’, como as quisermos designar…) intrigas, cimentadas no seu olhar de jornalista crítico de uma atualidade em chamas. A construção enxuta e variada do recente Último olhar não dececionará os leitores. MST deixa registado, no fim da narrativa, o local e o tempo do processamento da escrita: “Matalote, Pavia, 29 de Março 2020 / 29 de Maio 2021.” (opus cit., p. 307) É conhecido o seu encantamento pela paisagem alentejana, e – com todas as probabilidades – trata-se do Monte Matalote, hospedagem em Pavia, Évora, aberta desde 20 de março 2020. Em reclusão ou pontualmente, aquele foi o seu porto de abrigo interior para, em 14 meses, processar este livro. Coincidência ou não, são também 14 os capítulos, que nos apresentam personagens perfeitamente individualizadas nas suas ‘estórias’ pessoais, mas que acabam por se cruzar, nalguns últimos e improváveis olhares. A abertura contém 3 epígrafes que servirão de macro contextualização para toda a narrativa, o tema do SARS-CoV-2 a rodear ocularmente o leitor: história da medicina; medo e maldade humanas; crise religiosa do nosso tempo.

Pablo Segovia Rodríguez é um velho infetado num lar de terceira idade em Alcalá del Rio; pelas contingências sanitárias adversas vê-se obrigado a deslocar-se para Cádis. Nos capítulos II e III, há um flash-back para a infância de Pablo, com a Guerra Civil de Espanha. No Vº, criança, foi feito prisioneiro do campo de Mauthausen, com a dolorosa separação do pai. No VIIº, lemos a crua descrição dos dias no campo, entrecortadas por finíssimas abertas de esperança (como a relação com Mercedes ou com o fotógrafo de Mauthausen), até à libertação pelas tropas do 3º Exército dos Estados Unidos. Pablo regressa a Landes, em França, casa-se e tem 2 filhos, mas o casamento acabou por ser um falhanço (VIII).

No capítulo IVº surge a Dr.ª Inez Montalbán, madrilena casada há 8 anos com Martín, a viver um intenso caso amoroso com Paolo, seu colega italiano e companheiro de vários congressos médicos. No VIº, começam a despontar as dúvidas sobre a ética da sua postura conjugal. No cap. IX, a reflexão interior de Inez é sobre o modo como na sua profissão se consegue lidar com a morte dos outros, a que se segue um episódio (desesperado?) de procura de prazer, até à revelação feita telefonicamente por Paolo da catástrofe eminente com o vírus em Itália. No Xº, Inez e Paolo voltam a encontrar-se e a dimensão da crise sanitária dominará o seu reencontro (o último olhar?) – porém os encontros familiares passam a ser vistos com outro olhar. No XIº, dá-se a ler a complexa-inevitável falência do quadro hospitalar italiano, face à escalada da pandemia, e Inez começa a interrogar os cuidados de saúde do seu país pelas diferenças existentes entre novos e velhos, o que também a levará a desentender-se com Martín. No XIIº, Paolo fica infetado e acaba por morrer; Inez confessa tudo ao seu marido e comunica-lhe a decisão de deixar o trabalho hospitalar para se dedicar a um lar de idosos, em Sevilha.

É nos 2 capítulos finais que a ‘estória’ de Pablo se vai cruzar com a da Dr.ª Inez (e o leitor percebe, então, que já era ela a médica que aparecia no capítulo I), imersa num mundo que a faz refletir sobre a desumanidade com que os idosos são tratados pela nossa sociedade, e surpresa com a capacidade crítica e autodeterminação daquele homem de 93 anos. O episódio final da caravana com 28 velhos infetados, no percurso até Cádis, e o modo selvagem como a multidão da localidade os recebeu, bombardeando-os, faz compreender e justificar a violência de sobrevivente com que Pablo riposta, até pôr fim à sua vida. Não sem que antes se tenha encantado com o último olhar desejado:

[…] Sempre em pé, debaixo da luz do candeeiro do tecto, desapertou os botões da bata e abriu-a lateralmente, fez o mesmo com a camisa que vestia por baixo, e, depois fez escorregar, uma de cada vez, as alças do soutien, descendo-o até à barriga de modo a expor o seu peito, grande e desafiante, como toda a vida que ainda tinha pela frente.

- Obrigado, doutora… Inez. […]” (opus cit., p. 298)

Seria interessante que MST – seguindo uma prática anglo-saxónica – desse conta aos leitores de algumas referências presentes neste romance, como o filme O fotógrafo de Mauthausen ou as diversas fontes jornalísticas e dos meios de comunicação social, de que se serviu para recriar/ficcionar. A visão do que nos rodeia ganharia com esse rigor.