Opinião

Letras | Felicidade e a Rua da Esperança

30 nov 2021 17:22

Ter tido um gémeo que morreu à nascença transporta João Tordo para esta dinâmica de “espelho”, de quem somos nos outros

João Tordo nasceu em Lisboa em 1975. Em 2020 lançou este Felicidade. Tenta integrar o quotidiano de Lisboa na narrativa, pois sempre aí viveu.

O exemplo da Rua da Esperança ser onde o seu maior influenciador (Saramago) viveu, ou onde conheceu 3 gémeas duma família da sua rua influenciou-o para a ideia inicial deste livro. Também ter tido um gémeo que morreu à nascença transporta-o para esta dinâmica de “espelho”, de quem somos nos outros e o que somos nós na relação com os outros. Sendo formado em filosofia, não deixa de patentear esse lado trágico das obras da Antiga Grécia, e avançar para uma quase tragicomédia.

Curiosa é também a acutilância dos pormenores históricos, levando-nos quase a crer que a obra é autobiográfica, tal é a verosimilhança dos factos. Inicia-se numa época quase “virgem”, 1973, abarca a revolução e termina em 1988. Basicamente inicia-se no fim duma ditadura quase caduca e desenvolve-se para uma liberdade ainda muito pueril e recente.

O narrador assume-se como um adolescente de família conservadora com laivos de modernidade, que observa a sua vida a passar-se sem controlo seu algum sobre os acontecimentos da sua própria vida. Como se um oráculo lhe predissesse que o destino estava traçado às mãos dessas três fúrias (as gémeas), e que lhe auguravam um fim fatídico.

Divide-se, pois, em 3 partes. A primeira onde o narrador é ainda um jovem de 17 anos e vive o seu primeiro amor com Felicidade, experimentando o início da decadência a partir desse acontecimento trágico, em que ela morre, quando ambos perdem a virgindade. A segunda, já na fase adulta em que experimenta as agruras de uma vida onde a esperança e a expectativa colidem com a dura realidade e a falha (Rua da Esperança onde viveu Saramago). A terceira parte é bastante mística quase angélica e de grande profundidade emocional.

A narrativa também é mais sarcástica e irónica, quase “fantasmagórica”. O humor, o facto de ser corrosivo e subtil trouxeram novas variantes para esta obra. Esse humor contrabalança o absurdo dos eventos trágicos e equilibra a negritude com o riso. De notar a sexualidade que é abordada sem tabus, numa época em que a falta de liberdade de expressão amarrava a realidade. Fazia acreditar que a juventude não tinha desejo, e que tudo era hermeticamente tratado como se o amor fosse guardado para a procriação.

A ironia é que Felicidade morre durante o acto mas que sobrevivendo se encontraria grávida. Há como que a afirmação da sexualidade física e da sexualidade como desenvolvimento do foro emocional num país que abriu para a liberdade e com isso para a liberdade sexual e de expressão.

Um romance que perdurará, com lugar cativo nas melhores prateleiras lá de casa e das livrarias nacionais. Fundamental.