Opinião

Escrever para o mundo e contra o mundo

14 ago 2020 17:41

Martin Eden não é um filme possante do princípio ao fim. Contudo, no terceiro acto o filme adquire uma certa energia doentia fruto da decadência do protagonista, que nos apresenta um cinismo de quem já não tem nada a perder

Martin Eden ​ (2019), realizado por Pietro Marcello e baseado na obra homónima de Jack London, tem duas particularidades: a de nos apresentar a história específica de um marinheiro aspirante a escritor, Martin Eden (Luca Marinelli), que, através do seu trabalho autodidacta, esforço e entusiasmo, realiza esse sonho que se revelará amargo; e a de articular aquela narrativa com imagens de arquivo sem especificar datas concretas, que aparecem de modo fragmentário como metáforas a contrapor e incluir Eden na massa anónima de pessoas que vive e cria a História assim como a sua barbárie. 

É o facto de conhecer a jovem burguesa Elena Orsini (Jessica Cressey) que faz com que Eden se apaixone por ela e tenha a certeza de querer ser escritor.

Porém, ele não tem mais que a instrução primária, o que é uma barreira para ambas as suas conquistas. 

A educação que decide empreender por si próprio acaba não só por lançá-lo no conflito da relação do indivíduo com o mundo, como afastá-lo das suas intenções iniciais pueris.

Não é um filme sobre o ofício do escritor. Também não é um filme sobre as aventuras vividas pelo escritor que depois se transformam em matéria literária. 

É antes um filme sobre o futuro escritor enquanto indivíduo, a demonstração de uma tomada de consciência.


O realizador não nos apresenta Eden como alguém especial que não é digno das dificuldades por que passa para alcançar o seu objectivo, já que era uma pena vê-lo a desperdiçar energia nos trabalhos de esforço em vez de canalizá-la exclusivamente para a sua obra. 

Temos, sim, Eden como um homem como outro qualquer que luta pela vida de forma semelhante à costureira que vende os seus panos, ao amigo que resiste a custo no emprego de fundição, à irmã que é vítima dos abusos do marido, mas que escolhe a cultura para se emancipar. 

Com uma linguagem cinematográfica que mescla características da ​Nouvelle Vague (abordagem à construção narrativa e a ​mise en scène) e do Neo-realismo (preocupação humanista e da realidade objectiva), Marcello dá-nos uma prosa com rasgos de poesia. 

Se houve algo que o cinema italiano ofereceu ao cinema, foi a excelência de intérpretes e uma gama de rostos únicos com uma grande força expressiva: crus, mas ternos; belos, mas desoladores; toscos, mas autênticos e ​Martin Eden ​ não se furta a esse legado (Luca Marinelli ganhou o prémio de melhor actor no Festival de Veneza de 2019). 

Martin Eden não é um filme possante do princípio ao fim. Contudo, no terceiro acto o filme adquire uma certa energia doentia fruto da decadência do protagonista, que nos apresenta um cinismo de quem já não tem nada a perder, um desencanto feroz de uma educação que não o salvou, antes pelo contrário, que o sobrecarregou e que, por isso, só pode terminar num auto-aniquilamento.