Opinião

É uma vida boa para o senhor da mesa do fundo, s.f.f.

13 out 2016 00:00

O trabalho é sobrevalorizado. Eu quero é viver, isso é que já ouvi dizer ser inesquecível. Porque só se anda cá uma vez, a não ser que sejas esotérico, nesse caso andas cá uma carrada de vezes, não nos podemos desperdiçar.

Querido diário, não há uma maneira simples de te confidenciar isto, por isso, aqui vai: ultimamente tenho-me sentido uma Maria Leal. É verdade. Não, não é por ter um ar perdido e aluado. Não, não é por dançar com dois pés esquerdos isentos de qualquer ritmo enfiados numas botas ortopédicas uns números abaixo, nem é, tão pouco, por andar sempre semitonado em relação a qualquer melodia. Predicados que, infelizmente, também cumpro com distinção.

É por estar num entroncamento sem fim. Não é no Entroncamento a terra dos fenómenos, embora também viva rodeado de alguma surrealidade. Também não é exactamente no entroncamento onde a Maria Leal passa os dias, sob a batida controladora do DJ Azeite. É um entroncamento existencial. Passo a explicar. Infelizmente, por minha inaptidão, a minha síndrome de Miss Mundo terá de usar um açaime para o resto dos meus dias, porque já não vou conseguir mudar o mundo com o meu trabalho.

É deprimente, mas tenho de assumir ou assimilar, que a minha carreira não passará muito mais daqui. Se assim é, para que raio tenho de trabalhar tanto? Porque raio tenho de adormecer de portátil na genitália? Porque é que ando sempre sem tempo? Esgrouviado, despenteado, atrasado e arreliado. Feito uma meretriz que não diz que não a nada mesmo que, posteriormente, gaste quantidades loucas de pomada para as feridas.

Para ganhar mais dinheiro? Como? Se todos os meses a minha conta, ao dia 15, parece o tacho da sopa dos pobres depois do almoço. Para dar um futuro maravilhoso aos miúdos? Será isso possível? Se está comprovado que o que os nossos filhos precisam é da nossa presença, daquela presença em que nós, pais, estamos realmente presentes, e não de futilidades para desembrulhar.

Eu sei que sou só eu nesta posição, entalado e de cócoras, que vocês ganham todos rios de euros e que estão felicíssimos com a vossa maravilhosa e imprescindível carreira. Quero aqui declarar que sou contra o trabalho. E quero apresentar a minha pré-inscrição para aquele modelo de sociedade futurista onde o trabalho será opcional. Não duvidem, não bufem blasfémias, que eu já lancei os búzios e li no azeite, chegará o dia em que trabalhar vai ser só para quem quiser e eu, não quero. O trabalho é sobrevalorizado. Eu quero é viver, isso é que já ouvi dizer ser inesquecível. Porque só se anda cá uma vez, a não ser que sejas esotérico, nesse caso andas cá uma carrada de vezes, não nos podemos desperdiçar. Tudo o que abrande o sangue nas minhas veias, ou que me sugue vida em demasia é para abolir.

Enquanto não for possível, admito que a solução seja trabalhar o estritamente necessário para receber o dinheiro suficiente para que vivamos tranquilos, à margem da máquina centrifugadora em que os tempos se tornaram. Provavelmente não conseguirei, como tantas outras coisas que gostaria de cumprir, mas a ideia ninguém me a tira.