Opinião

Cinema | Olhos nos olhos 

28 ago 2020 20:00

O tempo quente favorece o esquecimento

As esplanadas e jardins mostram-se sedutores e convidativos como se esperaria num qualquer agosto, e o sol estival queima a pele exatamente na medida inversa em que a cerveja fresca arrefece as gargantas.

Na rua, circulam automóveis com matrícula estrangeira e escutam-se ecos de sotaques bizarros. Há praias repletas e calções de banho húmidos. Toalhas, bolas e chinelos coloridos.

Crianças com boné. Crianças que deveriam usar boné. Crianças com pele esbranquiçada por camadas sucessivas de protetor solar. Filas para a praia, filas para o centro comercial, filas para a farmácia e para os restaurantes.

Ruas desertas e areais completos. E máscaras. Sobre a boca, no queixo, na testa, no cotovelo e no pulso. No chão. Litros de desinfetante de base alcoólica, que dariam para encher várias piscinas.

Líquido, viscoso ou com textura suspeita. Cheiro a alfazema, cânfora ou bagaço. Os números, apesar de terem perdido honras de abertura dos noticiários, parecem querer desmentir que os raios ultravioleta matam o bicho.

Ou então são apenas prenúncio da segunda vaga que se aproxima. De novo o medo. Medo do outro e do desconhecido. E medo da economia, que, desta vez, não pode parar. Porque as metáforas com fenómenos naturais funcionam sempre melhor para sublinhar a insignificância humana.

Mais poderosa do que uma guerra contra o vírus ou uma corrida às vacinas só mesmo a força de uma segunda onda de contágios. Mas, isso não é para já. Para já, é agosto e o Markl faz reclames ao regresso aos cinemas. Verdade seja dita, que não precisava.

Porque é agosto. E porque as pessoas não querem regressar aos cinemas. Querer, querer, era mesmo festivais e arraiais, porque esta coisa do distanciamento social faz mesmo mossa é quando queremos dançar e abraçar os amigos ou partilhar cervejas e refrigerantes. E ver concertos sentadinhos ou cada um no seu quadrado, não é bem a mesma coisa, pois não?

Já o regresso aos cinemas, se calhar, não vai sofrer muito com toda esta comoção. Tirando um ou outro blockbuster capaz de arrastar magotes para os multiplex, o cinema dito de autor, independente, alternativo, não-comercial ou como lhe queiram chamar, já implementava o distanciamento físico há bastante tempo. Por necessidade e não por vontade.

Tirando alguns nichos, que podem e devem aproveitar o momento para promover a lotação completa dos espaços em que apresentam as sessões, não tenho grande memória de ter dificuldade em encontrar lugar para me sentar, devidamente afastado do espectador mais próximo.

Difícil mesmo vai ser conseguir que a máscara não me embacie as lentes dos óculos.

Artigo escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990