Opinião
Cinema | Estômago: entre panelas e prisões
A realização de Marcos Jorge recusa o didatismo: a crítica social está lá, mas surge embrulhada numa história envolvente, que se digere com prazer e deixa um sabor agridoce no final
Há dias comentava, em conversa com amigos, como o cinema brasileiro ganhou um novo fôlego depois de Cidade de Deus (2002). A partir daí, multiplicaram-se filmes que exploraram não só a violência urbana, mas também diferentes formas de falar sobre poder, desigualdade e sobrevivência.
E é aqui que chega o filme que vos trago hoje: a comédia dramática Estômago (2007), de Marcos Jorge, que troca as armas pela cozinha e transforma a comida na sua metáfora central.
Raimundo Nonato, interpretado de forma magistral por João Miguel, chega a São Paulo de bolsos vazios. Mas, o seu talento inesperado para cozinhar vai-lhe abrindo portas: primeiro num bar modesto e, mais tarde, num restaurante mais sofisticado. No entanto, é dentro da prisão que a sua arte ganha o seu verdadeiro peso: até porque quem controla a comida, controla o poder.
A narrativa alterna entre a ascensão de Nonato no “mundo de fora” e a sua posição no “mundo de dentro”, jogando com o paralelismo das duas realidades até à revelação final.
O filme impressiona pela forma fascinante como mistura drama e humor negro, sem nunca perder o ritmo. A fotografia de Toca Seabra dá um tom quente e íntimo às cenas da cozinha – quase sensorial – fazendo-nos sentir os cheiros e sabores, contrastando com a frieza dos espaços da prisão. A montagem alternada segura a tensão narrativa, criando uma expectativa sobre como as duas linhas temporais se irão cruzar.
Para além do argumento engenhoso assinado por Lusa Silvestre, Estômago destaca-se pelo elenco — não só João Miguel, mas também Babu Santana e Fabiula Nascimento, que dão densidade a personagens aparentemente simples. A realização de Marcos Jorge recusa o didatismo: a crítica social está lá, mas surge embrulhada numa história envolvente, que se digere com prazer e deixa um sabor agridoce no final.
Disponível em várias plataformas de streaming, Estômago é daqueles filmes que mostram como o cinema pode ser saboroso, inteligente e surpreendente. Vale a pena ver — de preferência depois de jantar, porque abre o apetite e eu nunca mais vi uma “coxinha” da mesma forma na vitrine de um café.