Opinião

Cinema | É possível sobreviver à perda?

23 mai 2021 20:00

O filme mais recente de Christian Petzold intitulado "Undine" (2020), que decorre entre a cidade de Berlim, mais especificamente junto ao Departamento de Desenvolvimento Urbanístico de Berlim (DDUB), e uma barragem na periferia, remete para o mito da ninfa aquática que se torna humana quando se apaixona por um homem, mas que está condenado a morrer caso lhe seja infiel

Após a conversa de separação de Johannes (Jacob Matschenz), seu agora-ex-namorado, (cena inicial) e de dar uma palestra sobre a arquitectura da Berlim ocidental e oriental, no DDUB, onde trabalha como freelancer, Undine (Paula Beer) regressa ao café na esperança de que Johannes volte atrás na decisão.

Não o encontra em lado algum. Lá dentro acaba por se deparar com um palestrante, Christoph (Franz Rogowski), que lhe faz um convite para irem tomar um café.

Ainda atónita, recolhe-se em silêncio até ao momento onde o aquário presente na sala se quebra e derruba os dois com a avalanche de água e vidros, que ferem Undine.

Magoada no peito (simbolicamente e literalmente), Christoph não só remove os pedaços de vidro em que um deles parece ter feito um corte “bastante profundo”, como, em breve, a curará do desgosto amoroso, tornando-se seu parceiro.

Paula Beer e Franz Rogowski voltam a contracenar depois de Transit (2018), também do mesmo realizador.

Beer é fascinante desde o início sem nunca demonstrar qualquer traço de superficialidade na sua personagem que tem de oscilar entre a ingenuidade e a taciturnidade.

Já Rogowski é de uma sensibilidade surpreendente, dando à sua personagem uma vulnerabilidade, que não é fraqueza, e uma doçura desarmantes.

Os dois formam um casal que acolhe o amor de forma espontânea e intensa em que a direcção de fotografia acentua esse lado sereno.

Mas nem tudo é um conto de fadas, porque, no seio das cenas, há um efeito sonoro desestabilizador que inquieta constantemente o espectador, agourando qualquer coisa de trágico.

Sob o signo da repetição, cujo motor que o anima é o belíssimo e soturno Adagio (concerto em Ré m, 974) de Bach, os espaços, os gestos rotineiros de uma relação, assim como as acções rotineiras do trabalho, acumulam-se para, no último terço do filme, através de uma elipse fabulosa (para muitos não será mais que uma manipulação), se derramarem em perda e ausência.

Mais do que se tratar de uma reflexão sobre o que é ilusório e real, trata-se antes de um filme sobre o lado dramático da quebra de um vínculo e a consequente capacidade de lidar com a dor (mesmo naquilo que ela tem de mais perigoso, ou seja, a própria morte).

Não é por acaso que, ainda perturbado pelos fantasmas do passado apesar da sua vida parecer demonstrar o contrário, Christof decide mergulhar uma última vez na albufeira da barragem para tentar resolver o que restou daquele relacionamento amoroso.

Petzold dá-nos Undine como um sonho com os seus símbolos e o seu ar um tanto misterioso, que procura ter uma relação com o espectador mais na ordem do irracional do que na da lógica. «Eu prefiro sentir um filme do que compreendê-lo», disse uma vez Robert Bresson.

Não estaria mais de acordo.