Opinião

Cada um é muita gente: Ao canto do Outono

18 fev 2024 16:34

Ao pé de um canteiro lá faz o dia, entre gente que passa de compras na mão. Faz parte da moldura que é já poesia, em folhas de jornal com que embrulha o coração

À esquina do Inverno, vem o frio e ela também. Ali, junto à rodoviária, bem no centro da cidade que nos tem. Ao fundo da avenida, lá está ela com as castanhas, dando calor à vida. Quem lá passa, lá a escuta. Ali, entre o castelo e o rio, na sua luta. E apregoa como um desafio. Meia dúzia, mais uma ou duas. E, se não mata a fome, mata o frio. As castanhas e as dores? Todas suas. Mas também as alegrias, as vidas e os dias que ela conta e que lhe dão a ouvir. Dos adultos, as coisas banais. Das crianças, palavras a rir. Um carro que se empurra e que fica ali quietinho. E o fogareiro de duas asas, dormindo sobre as brasas, ali quentinho. Naquela curva, junto à passadeira.

Vai passando a vida, e ela, de vez em quando, na brincadeira. Sorri e ri tantas vezes, talvez para esquecer ou para enganar o esquecimento. Ela lá sabe, e ele lá arde. Com o tempo. E ela também, a mulher que apregoa ao fim da tarde. Ao pé de um canteiro lá faz o dia, entre gente que passa de compras na mão. Faz parte da moldura que é já poesia, em folhas de jornal com que embrulha o coração. E lá estão as pessoas, acompanhadas, sozinhas.

Quem quer quentes e boas, quentinhas? Rosto maroto, cabelo branquinho, parece um garoto, mas já velhinho. Talvez tenha tido a vida que sempre quis, talvez não. Não sei se é feliz, mas as vidas que ela diz ainda cá estão. Carrega- -as no carrinho, mas não as diz assim a ninguém - estão num lugar distante. Parece levar a vida de mansinho, ao de leve no seu carrinho, a mágoa que transporta a miséria ambulante. E, quando eu passo por ela, vem aquele cheirinho bom de uma castanha à janela debruçada sobre um naperon.

Há casa antiga naquele lugar, naquele cantinho que já é seu. Uma sala de estar, um rádio a tocar e um tecto feito de céu. A porta está sempre aberta, venha quem vier por bem. A rua nunca deserta, há sempre alguém. E eu não sei quem está ali, nem quem lhe passa ali ao lado. Pedacinhos de Ary. Quem sabe a desventura do seu fado?