Viver

Tiago Salazar | Psicólogo e padre confessor aos comandos de um tuk-tuk

21 dez 2017 00:00

O escritor veio a Leiria para ajudar a apresentar o livro Casa Alta, de Paulo José Costa e Sílvia Patrício, e acabou a falar de viagens, de livros, de amizade e de jornalismo.

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Jacinto Silva Duro

Tiago Salazar passou por Leiria para apresentar o livro Casa Alta, de Paulo José Costa e Sílvia Patrício, e acabou por contar ao JORNAL DE LEIRIA as suas mais recentes aventuras aos comandos de um tuk-tuk lisboeta, vertidas nas páginas do livro O Moturista Acidental, publicado pela A23.

Não é chofer, nem tão pouco taxista, mas um amigou emprestou-lhe um "riquexó motorizado" e deu consigo a subir e a descer o Bairro Alto e a zona da Sé, e até a aventurar-se na Amadora, enquanto emprestava os ouvidos aos turistas que lhe iam contando as suas histórias.

Tudo começou com algumas crónica diárias na revista Sábado e só deveria ter durado um Verão. "Sou um escritor conhecido por viajar intensamente e escrever sobre as minhas viagens. De repente, deixei de viajar intensamente e passei a viajar com os turistas de todas as partes do Mundo."

Ao contrário de Garrett, Salazar não sentiu a estranheza e conhecer a sua própria terra, aos comandos do tuk-tuk baptizado Alma de Fadista, antes fez viagens no estrangeiro sem sequer sair dela.

Explica que se sentiu como o Ulisses do poema Regresso a Ítaca, de Kavafys, que Sena tão sabiamente traduziu: "quando partires de regresso a Ítaca,/deves orar por uma viagem longa,/plena de aventuras e de experiências."

Não tropeçou em Cíclopes, Lestrogónios, nem mais monstros e muito menos num Poséidon irado, mas voltava todos os dias para casa com o alforge recheado de coisas para contar.

Novela em três horas
Aos comandos do tuk-tuk, foi médico de Clínica Geral e, acima de tudo, psicólogo e padre confessor.

"De repente, tinha um emigrante na Suíça a contar-me coisas sobre a sua intimidade. Que teve um ataque cardíaco, que tem a mulher numa cidade dos cantões, que estava cá com a amante e que tem outra amante que conheceu num avião e ainda outra no Porto... no espaço de três horas, vive-se ali uma novela."

Mas a intimidade do escritor que é casado com a fadista Cristina Branco, também foi posta à prova. "Um casal americano, hospedado no Ritz, queria que convidasse a minha mulher e fizesse um swing com eles! Mas não sabiam quem ela era, ao contrário de um casal holandês que não acreditou que alguém que conduzia um tuk-tuk podia estar casado com 'uma diva'.

Podia estar a fazer isso como o Daniel Day-Lewis esteve a trabalhar num sapateiro, em Florença, porque lhe apeteceu."

“Diverte-me passear pessoas”
"Isto de andar a passear pessoas é um trabalho muito rico. Permite-me viajar sem ter de realmente viajar. Encontrei pessoas de lugares onde estive e de onde escrevi reportagens, que ficam muito surpreendidas. Por exemplo, encontrei uma pessoa da cidade de Louisiana, na Dinamarca, que ficou espantado por eu já lá ter estado. Por acaso é uma vila onde há uma colecção riquíssima de artes plásticas, no museu local de arte moderna."

Encontrou pessoas da África do Sul e da Mongólia que não queriam crer que Tiago conhecia as suas cidades natal. "Fernão Mendes Pinto escreveu Peregrinação e toda a gente supunha que ele era mentiroso. Os factos descritos eram tão extraordinários que pareciam ficção. E não é preciso ir para longe para encontrar lugares que parecem fantasia. Ainda hoje de manhã fui dar um passei pelo centro histórico de Leiria e entrei numa chapelaria que parecia saída de Alice no País das Maravilhas."

O escritor diz que, comparados com outros povos, os portugueses "sofrem" de mundividência. Conhecem o mundo inteiro, não obstante Portugal ser um pequeno país, nas costas da Europa. "Pequenos de geografia, mas grandes de expansão." É que os portugueses têm uma óptima relação com o mundo. Afinal, foram eles quem o descobriram.

Tanto pode estar a escrever crónicas como a conduzir turistas pela cidade, a apresentar um livro ou a dar aulas e o elo continua a ser o diálogo e a conversa constantes.

Comunicação sem segredos
O segredo de uma boa conversa é deixar a curiosidade do outro lado. "Ajuda imenso falar várias línguas, quando se viaja." De episódio em episódio a conversa, lá está, flui. Fala-se agora de Scorcese que até realizou um dos filmes favoritos do escrito: Touro Enraivecido. Diz que sente dentro de si o instinto primordial de um boxeur. De Jake LaMotta.

"Fui praticante de boxe. Tenho traços de personalidade daquele gajo. O meu pai também tem. E não há prestidigitação nisto. É um facto." O mundo das viagens e de uma boa conversa é assim mesmo. Trocam-se ideias, conhecimentos e experiências. "Agora vivo em Lisboa, antes vivi em Amesterdão dois anos, viagem sem parar mais uma série de anos, vivi em Almeirim que até é muito conhecida pela Sopa da Pedra, Está na Rota Mundial!"

Voltar a casa
"O que é para mim a casa, o lar? É uma biblioteca, como disse o Borges. As paredes têm de estar forradas com livros. Quadros que remetam para livros... A minha ideia de casa também tem a ver com calor. Com o do Verão, natural, e com o do Inverno, mais suave, artificial e localizado. Mas as minhas casas têm de ser quentes e acolhedoras."

A vista também é condição sine qua non, no lar de alguém que já viu o mundo. A casa actual é pequena, mas fica num ninho de águia. "Não gosto de morar em andares baixos. Gosto da gávea. Se fosse marinheiro nos Descobrimentos, era ali que eu estaria sempre. Em casa, uso o terraço para ter tempo para mim. Para fumar um charuto ou um cachimbo com o olhar no rio."

“Casa é também chegar ao aeroporto Humberto Delgado, pela rota de aproximação a sul, e passar por cima da praia da Caparica, por cima de Almada, do Cristo-rei e da Torre de Belém.”

Nem cristã, nem budista, a meditação e recolhimento espiritual de Tiago Salazar faz-se a olhar para os telhados de Lisboa e para o Tejo. Aceitou um convite virtual de Paulo José Costa para apresentar o seu livro e aceitou. Diz que responde sempre afirmativamente a estes desafios e sempre com o maior prazer do mundo. "Só se não puder mesmo. Faço sempre amigos."

E assim, Leiria voltou a ser um destino que também está, bastas vezes, na rota de viagens de Tiago Salazar. "Tenho cá bons amigos e a minha afinidade com a cidade está ligada aos bons momentos que tenho com eles. Desta última vez, além da chapelaria, fiquei a conhecer a mercearia que vende instrumentos presuntos e instrumentos musicais, a Rota do Crime do Padre Amaro, a casa do Eça, a polémica de uma nova construção na encosta do Castelo de Leiria."

Afundar-se nas ruas
Para verdadeiramente se conhecer uma terra é preciso afundar-se profundamente às ruas e falar com as pessoas da terra, para ficar a conhecer as pequenas histórias que a constituem. Foi assim que, de certa maneira, o primeiro romance de Tiago Salazar, A escada de Istambul, viu a luz do dia. Após anos a escrever para jornais e revistas e a colocar no prelo contos e livros de viagens.

Tudo começou com um passeio por Istambul até uma escada, que se tornou metáfora de vida e da história da família judia Camondo, cognominados os Rothschild do Oriente, cujo sangue se eclipsou nos campos de extermínio de Auschwitz.

"A história dessa escada é curiosa. A família morava na rua de cima e trabalhava na de baixo, mandou-a construir para evitar ter de dar uma volta para chegar lá abaixo. É uma escada em espiral, que se cruza. Podia ser apenas uma linha recta, mas não, foi uma coisa orgânica." O autor foi enchendo os buracos negros que a história dos Camondo, que podem ter tido origem italiana ou até portuguesa, foi deixando ao longo dos séculos. Imaginou episódios, relações, namoros, raivas, tudo situações da vida humana.

Tiago Salazar nasceu em Lisboa em 1972, formou- -se em Relações Internacionai s e estudou Guionismo e Dramaturgia e é jornalista desde 1991. Publicou no Diário de Notícias, Grande Reportagem, Vogue e na revista Egoísta. É escritor jornalista freelancer e formador de escrita e literatura de viagens
 

A escrita é como o boxe
Adora futebol e chegou a competir internacionalmente em torneios de golfe. Já lá vão três décadas. "Teria uns 16 anos e acho que me faltava frieza e cálculo mental. Tal como o boxe, é um desporto de grande estratégia. Não se pode gastar os cartuchos todos e mostrar o jogo, logo no início". A comparação com a escrita também é inevitável.

"Deve-se começar com um bom arranque, o melhor possível, mas não se pode depois perder o ritmo. E, tal como no boxe, onde o combate tem uma estrutura, a escrita segue regras. Mais do que isso, tem de haver um fio condutor: a vida."

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