Viver

Somos todos corpo, movimento e coração

6 dez 2018 00:00

Nos últimos quatro anos, o projecto Soma tem somado alunos, multiplicado oportunidades e subtraído preconceitos através das aulas de Dança Inclusiva

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Daniela Franco Sousa

Joca, Margarida, Pedro, Sofia e Júlio são alguns dos muitos bailarinos que todas as quartas-feiras se reúnem na Associação de Dança e Desenvolvimento Social de Leiria (ADDDL). Durante uma hora, apruma-se a coreografia, sente-se a música e esbate-se a diferença. No estúdio, o rádio toca um piano sentido de André Barros e todos eles são corpo, movimento e coração.

Falta meia hora para o início da aula de Dança Inclusiva e Joca já espera ansioso pela chegada do resto do grupo. Carinhosamente chamado de Joca, João Carlos tem 50 anos, vive na Bajouca, e mesmo nos dias em que não tem ensaios não deixa de passar pela Porta 2 do Estádio Municipal de Leiria. Nem que seja para dar um beijinho às meninas, contam as professoras da ADDDL.

Joca é bailarino há 15 anos, os últimos dos quais integrado no grupo de Dança Inclusiva desta associação. É utente da Cercilei e passa toda a semana a aguardar pela chegada de quarta-feira. Porque é nesse dia que se desliga da instituição e se prende ao seu par favorito, a Rita. “Gosto de todos os passos de dança. Mas aquilo que mais gosto é de fazer a escada humana”, conta Joca enquanto estica e encolhe as pernas.

A mãe de João Carlos faleceu recentemente e as aulas de Dança Inclusiva têm funcionado como um escape importante para este bailarino de necessidades especiais, acrescenta a sua professora e também bailarina, Joana Inês Santos. Estas sessões são um refúgio, um momento de alegria e, sem que Joca dê por isso, são ainda um grande passo a favor da sua saúde e da sua integração social, acrescenta a professora.

Aos poucos, o estúdio vai-se compondo. A Joca juntase agora Pedro, de 35 anos, que também é utente da Cercilei, aliás, tal como todos os rapazes que integraran o grupo deste ano. No ano passado, a Dança Inclusiva contou com a participação de raparigas, encaminhadas pela Oasis (Organização de Apoio e Solidariedade para a Integração Social) de Leiria. Mas este ano foram eles que aderiram, conta a professora. Pedro dança “há muito tempo”. Tanto, que até já lhe perdeu a conta. Só não perde de vista a Andreia, a sua bailarina preferida. E para ele “todas as danças são fáceis”, assim como tem sido fácil fazer amizades por aqui.

É agora Sofia quem entra no estúdio e engrossa o corpo de dançarinos. Tem 14 anos e estuda com o sonho de se tornar bailarina profissional. “Danço há quatro anos na associação e participo há três nas sessões de Dança Inclusiva. Convivo com pessoas que têm outro tipo de dificuldades e ganho outra tolerância, outra paciência para ajudar”, expõe a jovem estudante. Por outro lado, “tenho possibilidade de dançar com pessoas mais afectuosas”, acrescenta a adolescente.

É desta experiência de troca e de partilha que nos fala também Margarida, de 17 anos, que ambiciona ser terapeuta da fala. “Esta aula traz uma interacção diferente, com pessoas que são diferentes, que precisam de nós. A mim, também me traz coisas boas”, salienta a estudante. “Como o meu par, o Rui, que é muito divertido”, exemplifica Margarida.

A sala de Dança Inclusiva está quase cheia quando chega Júlio Féteira, de 22 anos. As professoras já tinham mencionado o rapaz que “tem qualquer coisa”. E eis que Júlio chega e se revela. Desde logo pela maneira como expressa a paixão pela arte. “Gosto de dança comovente”, prontifica-se a informar. E, minutos depois, ao som do piano, sob as indicações da professora Joana, lá está Júlio a dar o melhor de si. O trejeito dos braços, o gesto do rosto, um brilho no olhar que, partilhado com os outros bailarinos, emociona e comove.

Transformar mentalidades

E foi precisamente essa a comoção, esse agitar de mentalidades, no sentido da inclusão, que Susana Lopes procurou ao criar o projecto Soma e as Danças Inclusivas. Susana Lopes foi uma das cinco mães que em 2012 fundaram a Associação de Dança de Leiria. Sentia, tal como as restantes fundadoras desta associação, que não existia uma oferta diferenciada no campo da dança.

Depois de constituir a associação e, dentro dela, uma escola de dança com a oferta diferenciada que desejava, Susana percebeu que esta resposta, que se ajustava perfeitamente à sua filha mais velha, não se adequava ao seu filho mais novo, uma criança com necessidades especiais.

E foi assim que, logo no ano seguinte, em 2013, Susana Lopes e outras mães deitaram mãos à obra e estabeleceram parcerias com técnicas espanholas para dar início a aulas que aliassem dança, movimento e terapia. As parcerias foram feitas com profissionais estrangeiras, porque à data ainda não existiam em Portugal técnicas deste ramo com quem a ADDDL pudesse trabalhar. “Neste momento, o panorama está mudado em Portugal e temos a associação Praia, sediada em Lisboa, com a qual estamos a estabelecer contactos, no sentido de trazer terapeutas até cá”, adianta Susana Lopes.

Logo em 2013, o grande desejo da ADDDL era trabalhar a inclusão através da arte, da dança, com a criação de turmas heterogéneas, que pudessem ser formadas por pessoas com e sem necessidades especiais.

No entanto, explica Susana Lopes, por indicação da terapeuta de dança, movimento e terapia, a junção dos alunos sem aulas de preparação prévia seria contraproducente para todos. Foi então criado o projecto Soma, com as diferentes componentes que até hoje se mantêm.

Ou seja, aulas semanais de Movimento Criativo, “sessões direccionadas a crianças, jovens ou adultos com ou sem necessidades especiais, onde o movimento é usado como meio e processo para o desenvolvimento de competências e a aprendizagem em conformidade com as necessidades do grupo ou do indivíduo (esquema corporal, auto-estima, trabalho em equipa, competências motoras, de comunicação e interacção, entre outras)”.

E outras aulas de Dança Inclusiva, “direccionadas a jovens e adultos com ou sem necessidades especiais, que são aulas coreografadas ao alcance de todos, que são gratuitas, e que assentam nos valores da inclusão, da diversidade e de uma educação artística sem barreiras. Contempla aprendizagem e criação de trabalhos artísticos na área da dança contemporânea, integrando jovens/adultos com ou sem diversidade funcional, culminando em diversas performances em contexto comunitário”.

Andreia Silva, terapeuta e dinamizadora das sessões de Movimento Criativo, e Joana Inês Santos, bailarina, professora de dança e responsável artística do projecto Soma, sintetizam os objectivos previstos, bem como as metas já alcançadas. Andreia explica que trabalha previamente a coordenação, a flexibilidade e outros aspectos de cariz mais clínico, para que Joana possa depois ter condições para avançar, através da coreografia, com o trabalho da entreajuda, da autonomia, da relação social e da relação com o corpo.

No fim das várias aulas, a coreografia é apresentada publicamente, na festa de final de ano da escola da ADDDL, totalmente integrada entre todas as coreografias das restantes turmas, o que constitui um reforço no trabalho da inclusão.

Ao longo dos anos, a evolução dos alunos salta à vista: “quem há quatro anos chegou cabisbaixo, nada falador, nada sociável, sabe agora como estar, como esperar, quando intervir... estão muito mudados”, observa Joana Inês Santos. Além do trabalho desenvolvido nas instalações da ADDDL, o projecto Soma tem vindo a ser apresentado e executado fora da associação.

Um dos exemplos são as sessões promovidas junto de crianças com multideficiência no Agrupamento de Escolas Dr. Correia Mateus, em Leiria. E também os espectáculos realizados extra-contexto escolar, como aquele que se apresentou recentemente no Sport Operário Marinhense, na Marinha Grande, ou aquele que terá lugar dia 26 de Janeiro, no Teatro José Lúcio, em Leiria, e que se intitula Mosaico, anunciam as professoras.

Muita pedra por partir

Susana Lopes considera que muito continua por fazer no que toca a transformar mentalidades. Apesar de o trabalho de divulgação realizado pela associação, junto das escolas, dos agregados, das organizações, as famílias de pessoas com necessidades especiais continuam a revelar um certo “fechamento” e acreditam que os seus filhos só podem ter actividades em contexto institucional. Por isso, poucas oportunidades lhes dão para se relacionarem fora desse domínio e com o resto da comunidade, expõe Susa

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