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“Sinagoga” de Leiria reabre portas 520 anos depois

23 jul 2017 00:00

No final do século XV, com a perseguição aos judeus a recrudescer, a centenária comunidade sefardita de Leiria abandonou a cidade, o seu gueto e o templo. A sinagoga, transformada em Igreja da Misericórdia, abre agora portas, dessacralizada e dialogante.

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Jacinto Silva Duro

Abraão d'Ortas, Manuel de Leão e Francisco Rodrigues Lobo são nomes incontornáveis de Leiria. Homens de letras, da imprensa e da ciência. São também um sinal indelével da existência de uma forte comunidade judaica na cidade.

Uma presença que, desde o século XV, tem vindo a ser apagada pelo tempo e pela acção dos homens. Sobra pouco mais do que a toponímia como sinal evocativo da 13.ª tribo de Israel que, no caminho da Diáspora, se refugiou nas margens do Lis.

Os judeus foram uma das forças motrizes que estiveram por detrás da transformação da guarnição que vivia enclausurada entre as muralhas mandadas construir por D. Afonso Henriques, em buliçoso burgo.

A comunidade judaica floresceu e ajudou o casario a descer do meio das ameias do castelo, para a pequena planície entre o sopé do monte e o rio. Na próxima semana, essa comunidade judaica será recordada e voltará a ter um lugar de destaque, com a inauguração do Centro de Diálogo Intercultural de Leiria, no dia 26, às 17 horas.

Na Igreja da Misericórdia, templo que chegou a ser sinagoga, a cerimónia contará com a presença do ministro da Cultura, Luís Filipe de Castro Mendes. Praticamente desde a fundação da nacionalidade até ao século XV, os judeus de Leiria, que se dedicavam ao comércio e a alguns dos ofícios mais nobres da sociedade medieval da localidade, talharam a sua marca, embora, hoje, só a esquadria do centro histórico recorde a sua passagem.

Apesar de serem escassas as notícias sobre a presença de judeus na cidade de Leiria no século XIII, é de crer que já existiria ali uma pequena comunidade desde os inícios daquela centúria.

Num documento de Dezembro de 1219, encontramos a primeira referência a Jucefe de Leirena “um judeu de Leiria”. Na obra Os Judeus de Leiria Medieval como agentes dinamizadores da economia urbana, o investigador da Universidade de Coimbra, Saul António Gomes, escreve que “ultrapassada uma fase inicial marcada pela insegurança e instabilidade que as razias muçulmanas provocavam, cerca de 1147, ano em que se conquistaram as cidades de Santarém e Lisboa, Leiria cresce demográfica e urbanisticamente, multiplicando-se as suas freguesias religiosas e provocando mesmo o estabelecimento dos frades menores por 1230. Esse crescimento populacional e urbano deve ter atraído as atenções dos judeus estabelecidos em cidades mais antigas como Coimbra. Leiria oferecia condições de enriquecimento muito favoráveis, pela disponibilidade de terras férteis, pelo baixo-custo duma mão-de-obra abundante, pelo mercado alimentar que se desenvolve em virtude do crescimento demográfico.”

O facto de terem ajudado a criar cidades, emprestado dinheiro a reis para pagar os exércitos que lutaram pela independência contra Castela, terem financiado os Descobrimentos portugueses e ajudado a essa epopeia marítima, com os seus conhecimentos científicos, não foi suficiente para livrar de todo o mal a tribo de Israel em Portugal. Pelo contrário.

O protagonismo e o dinheiro emprestado aos cristãos faziam com que os judeus fossem alvo de uma política de apartheid e de perseguição e inveja constantes. Após o Massacre de Lisboa de 1506, com o rei D. Manuel I no poder, um soberano beato que exigiu a instalação de um tribunal da Inquisição em Portugal, os judeus foram forçados a tornarem-se “cristão-novos” ou a emigrar para países que ajudaram a enriquecer, como a Holanda e a Inglaterra.

Mas até esse período negro da história portuguesa, a comunidade judaica, cuja origem se pode traçar em território nacional até à ocupação romana, marcou o seu tempo. O Almanach Perpetuum, primeiro livro científico, não religioso, impresso em Portugal, saiu da prensa em Leiria, na tipografia de Abraão d’Ortas, corria o ano de 1496 e Rodrigues Lobo, cristão-novo, escreveria ali a maior parte da sua obra bucólica, antes de morrer inexplicavelmente, numa travessia do Tejo.

O gueto e "Juyaria de Leyrêa" O também investigador Acácio Sousa refere que a comunidade judaica de Leiria, nos séculos XIII, XIV e XV, era uma das maiores do País, fora dos grandes centros urbanos de Lisboa e Porto, e a sua sinagoga, demolida para que fosse construída em seu lugar a Igreja da Misericórdia, tinha especial importância.

Aliás, o novo Centro de Diálogo Intercultural que ali abrirá na quarta-feira é um dos projectos-âncora da Rede Portuguesa de Judiarias Sefarditas. Quem leu O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós, conhece a casa da São Joaneira, mãe de Amélia, beata que é amante do Cónego Dias e responsável por hospedar em sua casa o jovem Amaro, mas talvez não saiba que o local, que correspondia, na realidade, à casa onde o próprio Eça habitou em Leiria, ficava, até ao século XV, mesmo no meio do antigo bairro judaico.

A própria rua direita – Rua Barão de Viamonte – tinha grossas portas de ferro que se fechavam ao pôr-do-sol, enclausurando os discípulos de Moisés no interior do gueto húmido, pela proximidade do curso original do Lis, até ao romper do dia seguinte.

O local onde os judeus se estabeleceram era, na década de 1150, um caminho marginal à cidade, extra-muralhas, junto ao acesso às Portas do Sol da povoação. “Caminho que evoluirá para rua direita. Por finais daquela centúria surgiu uma nova freguesia, com igreja matriz sediada um tanto a sul da judiaria, intitulada de São Martinho, cujos fregueses rapidamente envolvem o terreno destinado à população judaica”, faz notar Saul Gomes.

Com o crescimento urbano, a "Juyaria de Leyrêa" acabou por ficar num local central da cidade com o valor de espaço comercial e mercantil por excelência, naquele burgo medieval. Na judiaria de Leiria, as pequenas vendas e bancas dos ourives, tintureiros, latoeiros, correeiros, ferreiros e outros mestres artesãos faziam a minúscula cidade fervilhar de vida.

O Leão e o Lobo
Passados mais de 500 anos desde a destruição da sinagoga de Leiria e sua transformação em Igreja da Misericórdia, a herança deixada por judeus e cristãos novos é mais viva na poesia e na prosa. Manuel de Leão ou Manuel de Leam, judeu, nascido em Leiria na primeira metade do século XVII, é menos conhecido em Portugal e na sua cidade natal, mas abre uma secção no Dicionário de Autores do Distrito de Leiria, de Agostinho Tinoco.

Fugiu para a Flandres onde publicou obras como o Triumpho Lusitano, um poema em estilo jocoso, El Duelo de Los Aplausos, escrito em espanhol e dedicado à alteza de Soissons y Saboia, e Gryfo Emblemático. Francisco Rodrigues Lobo, cristão novo – filho de pais convertidos -, nasceu 1580 e é um dos mais conhecidos poetas e prosadores da cidade.

Viveu durante a Dinastia Filipina, o que explica as obras escritas em língua castelhana, tendo escrito raramente em língua portuguesa. Foi autor, entre outras, de Primavera (1601), título geral das três novelas pastoris: Primavera, Pastor Pereyrino e Desenganado, O Pastor Peregrino (1608); Condestabre (1609); e A Corte na Aldeia (1619).

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