Viver

“Pessoa faz parte das casas, faz parte das famílias e está interiorizado nos portugueses”

1 jul 2016 00:00

Jerónimo Pizarro, especialista em Fernando Pessoa e Prémio Eduardo Lourenço, diz que o que falta descobrir e estudar sobre Pessoa o ocuparia por duas vidas… ou mais.

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Jacinto Silva Duro

Como é que um colombiano descobre e se apaixona pela obra de Pessoa?

Diria que o colombiano não se apaixonou apenas pela obra de Fernando Pessoa, mas por Portugal. Quando cheguei ao País, pela primeira vez, não era claro que fosse ficar muito tempo ou que ficasse a estudar apenas a obra de Pessoa. Vim para um ou dois anos e acabei por ficar 11 e, agora, regresso a cada três meses. Tornei-me luso-dependente e é isso que, para mim, é surpreendente. Pessoa é uma parte importantíssima dessa minha luso- -dependência, mas não é a única parte do trabalho que estou a fazer. Depois de ter voltado à Colômbia, uma parte muito grande do meu trabalho passou a ser a literatura portuguesa, tradução e publicação de obras em Português - mais obras portuguesas que lusófonas, mas incluindo literatura brasileira, angolana e moçambicana. Nos últimos quatro ou cinco anos foram publicados, pelo menos, 80 títulos de literatura em Português. Em Portugal, a parte mais conhecida do meu trabalho é sobre Pessoa, especialmente porque estão a ser publicados muitos livros sobre ele. A parte menos conhecida é com literatura portuguesa no geral.

Pessoa, em Portugal, é incontornável. Mas como foi que Pessoa passou de desconhecido a um autor quase "de moda", no mundo inteiro?

Isso é verdade, mas o mais surpreendente é isso ter acontecido em muito pouco tempo. Começo a ouvir cada vez mais gente a afirmar que um dos autores incontornáveis do século XX, a nível mundial, é Fernando Pessoa. É uma afirmação que jamais alguém diria há 40 ou 50 anos. Hoje, a importância de Pessoa é reconhecida ao ponto de já começarmos a embirrar com tanto merchandising e tanta coisa que não é sobre a obra. Em cerca de 30 anos, deixou de ser relativamente desconhecido para passar a ser um dos autores que ficarão para sempre na literatura portuguesa. No ensino secundária já se começa a dar mais alguma coisa além da Mensagem. Neste momento, parece que o fenómeno Pessoa só poderá aumentar. É um pouco semelhante ao que aconteceu na Argentina com Jorge Luís Borges que, a partir de certo momento, passou a ser a figura que mais marcava o panorama literário cultural desse país. Mas há outro fenómeno que é começar-se a estudar, praticamente, todos os autores do século XX em relação a Fernando Pessoa. Recentemente, foi publicado um livro sobre Nietzsche e Pessoa! Há trabalhos sobre T.S. Eliot e o poeta português e parece que muitos autores importantes do século XX estão a ser estudados em paralelo com Pessoa. Ele é visto como o centro de uma forma de reflectir e chegar à literatura moderna.

Para os portugueses, é quase um autor mitológico... Reconhecem-no, mas, na verdade, conhecem muito pouco da sua obra, além da parte mais popular, do trabalho em publicidade ou dos chavões. Mas há quanto tempo? Há quanto tempo é mitológico?

Uma mitologia precisa de séculos para se instalar e esta é uma mitologia de apenas algumas décadas. Vai haver sempre uma parte superficial da mitologia, haverá sempre um grande desconhecimento mas, em Portugal, até alguém quase sem estudos dificilmente não terá uma ideia sobre Pessoa. Até pode ser superficial, pode ser mínima, pode ser deturpada, mas faz parte dos imaginários. Isso não acontece em tão pouco tempo com a maioria dos escritores. Pessoa faz parte das casas, faz parte das famílias e está interiorizado nos portugueses. É certo que ainda falta conhecer mais de Pessoa, das suas figuras e obras. O conhecimento de Pessoa, mesmo superficial, é muitíssimo abrangente.

Foi à Arquivo Livraria, a Leiria, no início do mês, apresentar um livro com a obra completa do heterónimo Alberto Caeiro, com textos inéditos e na ortografia original, publicado pela Tinta da China...

Ainda vamos editar Ricardo Reis, queremos publicar toda a obra pessoana. Escolhemos Caeiro agora devido à parte que está inédita e à que está publicada do trabalho de Pessoa. Por exemplo, Álvaro de Campos tinha uma grande parte de prosa que estava inédita... No caso de Caeiro, a prosa é pouca mas os escritos que o autor fez sobre ele e o seu plano de apresentação europeia ou eram pouco conhecidos ou tinham sido publicados há já muito tempo ou estavam inéditos. Sobre a publicação das primeiras obras de Caeiro já se passaram quase 80 anos e havia partes que continuavam desconhecidas. Por isso, publicámos muitas novidades de Caeiro, em 2016. Queremos que, pelo menos, 98% da obra que publicamos dos heterónimos e ortónimos esteja completa. Pode faltar um texto ou podemos discutir o problema de atribuição de um texto mas, tirando essas questões, são obras que ficam já "arrumadas". A próxima “pessoa” a ser publicada será Ricardo Reis. Na verdade, há tanta coisa do escritor que nós, os investigadores, se quiséssemos, publicávamos um inédito de Pessoa por dia e faríamos uma coluna diária num jornal.

Pessoa é uma espécie de súmula da alma lusa?

Isso dependeria muito das características de uma alma lusa e da educação de Pessoa. Ele teve, em grande parte, uma educação inglesa e um grande número dos seus escritos estão em Inglês, outra parte está em Francês e as pessoas, que têm presente a frase "a minha Pátria é a língua portuguesa", surpreendem-se ao aperceberem- se que há muito escrito noutros idiomas. Os livros da biblioteca particular de Pessoa estão quase todos em Inglês. Há muitas coisas difíceis de definir que fazem dele uma alma muito lusitana. Pessoa queria ser uma figura importante da história nacional e da "civilização" portuguesa. Queria ser uma espécie de arauto cultural de um novo Portugal. A Mensagem é isso. No entanto, ele escreve textos que são menos nacionais do que se poderia imaginar. Sendo um representante da cultura nacional não é, necessariamente, inteiramente português. Por vezes, é necessário ter um escritor internacionalizado e desnacionalizado para que possa ser muito mais universal.

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