Sociedade

Os nossos constituintes

23 abr 2015 00:00

Quarenta anos após as eleições para a Assembleia Constituinte, recordamos, pela voz de deputados eleitos por Leiria, alguns dos episódios que marcaram o ano de trabalhos parlamentares.

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Maria Anabela Silva

Há 40 anos, o País estava mobilizado para o que aí vinha. Depois de décadas de ditadura, os portugueses iriam escolher, em eleições livres, os 250 homens e mulheres que tinham a árdua tarefa de elaborar e aprovar a Constituição, pedra basilar do regime democrático e uma das grandes promessas do Movimento das Forças Armadas que, no ano anterior, tinha derrubado a ditadura.

Quarenta anos depois, relembramos, pela voz de alguns dos deputados constituintes eleitos por Leiria, o trabalho e alguns episódios que marcaram o período de vigência da assembleia, como o dia do cerco, quando os deputados estiveram mais de 24 horas retidos dentro do edifício, ou da votação da Constituição, que alguns aprovaram com as lágrimas nos olhos.

Álvaro Órfão trabalhava como enfermeiro na CIVE – Companhia Industrial Vidreira da Marinha Grande (actual Barbosa e Almeida), quando foi convidado para integrar a lista de Leiria à Assembleia Constituinte, que seria liderada por Jorge Campinos, então secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros do Governo provisório.

“Ficou definido que seria o cabeça-de-lista, mas que não tomaria posse na Constituinte, porque tinha em mãos um processo muito delicado. Estava a negociar o acordo de Lusaka, que definiu os termos da descolonização”, conta o antigo presidente da Câmara da Marinha Grande, que acabaria por ficar conhecido como “o deputado da bóia”.

Um cognome que deve a um episódio passado um dia depois de Galvão de Melo ter proferido, num discurso em Rio Maior, a frase “comunistas ao mar”. Em plenário, Amaro da Costa, da bancada do CDS, era interpelado sobre o assunto por um elemento do PS, que lhe pedia esclarecimentos. Quando o deputado centrista tentou explicar a posição do partido, Álvaro Órfão sugeriu: “dar uma bóia a cada um”. “Houve risos e aplausos durante muito tempo”, recorda o antigo deputado.

Quem também foi presenteado, mais do que uma vez, com os apartes de Álvaro Órfão foi Vital Moreira (PCP), que acabava depois por “agarrar nas bocas e introduzi-las no seu discurso”. “Cheguei a dizer-lhe que tinha de me pagar direitos de autor”, graceja o socialista, frisando que esses momentos humorísticos serviam também para desanuviar o ambiente, “por vezes, de cortar à faca”, que se vivia no hemiciclo.

Único deputado eleito pelo CDS no distrito, Francisco Oliveira Dias - que na bancada ao lado (PPD) chegou a ter, por pouco tempo, o irmão Tomás Oliveira Dias – recorda também a “intensidade” dos debates na assembleia, sobretudo, nos primeiros tempos. “A revolução ainda estava na rua. Havia muita turbulência, que acabava por passar para o hemiciclo. Com o tempo, o funcionamento dos trabalhos foi-se normalizado.”

Deputados cercados durante longas horas

Para 12 de Novembro de 1975 estava reservado um dos momentos que mais marcaram os deputados constituintes ouvidos pelo JORNAL DE LEIRIA, quando operários da construção cercaram a Assembleia durante mais de 24 horas. “Saí ao intervalo para ir lanchar a uma tasca que havia ali perto. Comemos umas petingas fritas. Quando regressei, o largo em frente à assembleia estava cheio de gente. Deixaram-me entrar e lá ficamos o resto do dia, a noite toda e parte do dia seguinte”, conta Álvaro Órfão.

Além da “confraternização” entre deputados durante o cerco, o socialista recorda um episódio passado com um deputado do PPD, que sofreu uma crise de hipoglicémia. “Sabíamos que tinha entrado comida no PCP e houve quem tentasse ir buscar alguma coisa para aquele deputado, mas não se conseguiu. Não sei bem como se resolveu a situação, mas, felizmente, tudo acabou bem.”

Nesse dia, Pedro do Canto Lagido (PS) tinha estado em Leiria e não sabia da greve. Quando chegou a Lisboa, estacionou, como sempre, em frente à assembleia e seguiu para o plenário, sem imaginar que o seu automóvel iria servir de cama durante o cerco. “Quando finalmente saímos, percebi que tinham dormido em cima do tejadilho, que apresentava uma concavidade”, conta o antigo constituinte.

Mas, para Francisco Oliveira Dias, o dia do cerco seria bem mais trágico. O eleito do CDS estava no interior da assembleia, já completamente cercada, quando foi informado que a esposa tinha sido hospitalizada em estado grave. “Só por volta das duas da manhã consegui que me deixassem sair. Pedimos a um deputado do PCP que conhecíamos melhor, que foi falar com outro camarada, e lá me autorizaram a sair. Um deles veio trazer-me ao fundo da escadaria”, conta o médico, cercuja esposa viria a falecer no dia seguinte.

“Passámos o dia a cantar o hino nacional”

“Memorável” foi o dia da aprovação da Constituição. “Votei a Constituição com lágrimas nos olhos, porque tinha a percepção que estava a votar a arquitectura da democracia portuguesa”, recordou, em 2010, José Gonçalves Sapinho, já falecido, durante a apresentação do livro Os deputados de Leiria na Assembleia Constituinte – 1975/76, da autoria de Kalidás Barreto.

Desse dia, Francisco Oliveira Dias refere a posição “coerente” do CDS, o único partido a votar contra. “O texto final tinha limites muito severos quanto à revisão da Constituição”, explica o antigo constituinte, que presidia à Assembleia da República quando houve a primeira revisão constitucional, em 1982.

O antigo parlamentar recorda ainda a alegria que se viveu no hemiciclo. “Passámos o dia a cantar o hino nacional. A constituição era má – e ainda não é boa –, mas era melhor ter uma Constituição má do que não saber o quadro constitucional em que nos movemos. Por outro lado, abriuse caminho à eleição de um governo de maioria.”

“Orgulho-me profundamente de ter participado nesse momento histórico. Foi a vitória daqueles que acreditavam que se poderia construir um País sem guerrilhas diárias”, afirma Luís Kalidás Barreto, constituinte eleito pelo PS e que durante o seu mandato procurou “defender a zona Norte do distrito de Leiria”, através da apresentação de vários requerimentos sobre, por exemplo, a indústria têxtil, os caminhos florestais ou os bombeiros.

Pedro do Canto Lagido sublinha também a emoção que se viveu no dia em que foi proclamada a Constituição. “Sentíamos que tínhamos participado num dia histórico e que se havia cumprido uma etapa importante na história do País”, recorda o socialista, que acrescenta: “Estar na Constituinte foi uma grande experiência política. Havia pessoas altamente qualificadas.”

Apesar da breve passagem pela Constituinte, de onde saiu pouco tempo depois da tomada de posse para assumir funções internas no PS, António Aires Rodrigues diz sentir “um grande orgulho por ter sido eleito e, sobretudo, por poder começar a desenvolver o trabalho pelo qual tínhamos combatido com a população”.

O antigo dirigente do PS, agora ligado ao POUS, considera “extremamente importante a consignação de direitos das comissões de trabalhadores no texto constitucional, que foram e continuam a ser ponto de apoio na luta dos trabalhadores em defesa dos seus direitos”.

Da sua passagem pelo hemiciclo, Aires Rodrigues recorda o dia em que foi escolhido pela bancada para responder ao discurso de Vital Moreira proferido após àquela que ficou conhecida como a manifestação da Fonte Luminosa, em Lisboa. “Atacou o PS por ter desencadeado a manifestação, considerando-nos como criminosos por isso. Eu defendi o livre exercício democrático de manifestação e de expressão.”